Cinema é a chance de pessoas anônimas libertarem-se de suas origens para se destacar numa arte de massa com uma persona inventada, identificada na interpretação, direção ou produção das obras. Estrelas americanas, por exemplo, vieram do nada: Rita Hayworth era venezuelana, Kirk Douglas russo, Billy Wilder alemão fugido do nazismo e Norma Jean louca. Já a cubana Ana de Armas é hoje a estrela maior de Hollywood interpretando a loucura da leitora de Tchekhov, Norma Jean, ao se transformar em “Blonde” (Netflix, 2022), a loura burra Marilyn Monroe.
A partir de seu personagem, Archibald também queria ser ele próprio, Cary Grant e o ator de voz fanhosa acreditava ser o Humphrey Bogart que interpretava na tela depois das onze da noite bebendo no bar.
Mas segundo o romance de Joyce Carol Oates, em que se baseia o filme, Norma odiava Marilyn e sua vida profissional e amorosa foi uma busca obsessiva e malsucedida do pai ausente, uma origem mal-assombrada pela doença mental da mãe.
A percepção do filme, e de Ana, tem obedecido as distorções que atormentaram a vida de Marilyn. Antes de ver “Blonde” li textinhos espertos sobre a possível pornografia do filme e da atriz. Uma visão adulta da obra coloca as coisas no lugar. Impossível haver sedução e desejo num roteiro de surtos psicóticos, abortos, consumo de drogas pesadas, boquetes asquerosos, sorrisos forçados. Salva-se a sinceridade, a doçura e o talento de Ana de Armas, que se não ganhar o Oscar desta vez adeus à credibilidade do Oscar.
O filme não é pornográfico, nem isso ou aquilo. É, como todos, um filme sobre cinema. Não porque aborda o drama de uma atriz na indústria cinematográfica, seria óbvio demais. Mas porque sua estrutura revela a trajetória da Sétima Arte impregnada ao longo de toda narrativa. A origem é a exploração sexual das pin-ups e a herança de grandes cineastas como Chaplin e intérpretes como Edward G. Robinson. A ménage à trois dos filhos dessas personalidades com a estrela ascendente mostra que Norma surfou na onda do grande cinema para se projetar na carreira. Como não ficou satisfeita por ser leitora atenta da grande dramaturgia procurou elaborar sua arte no Actors Studio. Chegou assim ao apogeu do cinema, a fase inesquecível dos gênios.
Sua danação vinda da infância abandonada se impõe no desfecho. E assim temos um filme noir no claro escuro fincado na sobriedade da vanguarda americana e europeia. Um milagre nesta época em que o cinema foi enterrado e levanta-se de repente para todo mundo ver.
O diretor Andrew Dominik, neozelandês, já tinha feito outro grande filme em 2007: “O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford”, onde um assustador Brad Pritt (que produziu “Blonde”) é traído por um dissimulado e brilhante Casey Affleck.
Filme: Blonde
Direção: Andrew Dominik
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 9/10