Ser jovem nunca foi fácil. A juventude se nos apresenta como um ajuntamento de autocobranças, satisfações que achamos que devemos ao universo — quando o universo não faz a menor ideia de quem somos, e não tem nenhuma pretensão de fazê-lo —, dilemas existenciais característicos, muitos profundos como um balde, e dúvidas quanto ao que reserva-nos o futuro, essas de fato preocupantes. Tememos ser surpreendidos pelos tantos inesperados da vida sem que ainda estejamos prontos, o que, como todos sabemos os que já passaram de determinada idade, sói acontecer com uma frequência meio enjoativa. O momento em que somos impelidos à deixar a casa paterna e materna e nos lançar ao mundo, sem qualquer certeza sobre se resistiremos ao arrojo da nossa própria ousadia, vem num jato; é quando sentimos que, se não tomamos posse de nosso destino naquele instante mesmo e decidimos o que quer que seja, depois poderá ser irremediavelmente tarde demais.
O cinema tem seus queridinhos, e os musicais, definitivamente, não estão entre eles. Quiçá o gênero mais ingrato do cinema, musicais são controversos por natureza. Por trás de um bom musical, figura uma equação tão complexa quanto fascinante, que reúne uma medida de números com canções e coreografias paranoicamente marcadas; diálogos que adicionem o que convém ser transmitido pela fala corrida de forma a manter aceso o interesse do espectador pela história; reviravoltas orgânicas, que não sobrepujem o enredo principal, mas que tenham uma razão inescapável para entrar na narrativa e a trama em si, capaz de mesmerizar o público e de fazer com que gente das mais variadas origens, de todos os credos, de todos os estratos sociais se emocione, vibre, se reconheça. Não é fácil, mas quando se alcança tal feito, parece que abrem-se novas possibilidades para que a vida mereça outra vez ser considerada um tempinho razoável, enquanto não nos despachamos para um lugar mais adequado.
Brincando em cima daquilo, falando de musicais e da mágica por trás deles, Lin-Manuel Miranda sugere ao público um jogo metalinguístico cujo terceiro participante é um dos maiores talentos dos espetáculos da Broadway. “Tick, Tick… Boom!” (2021) vai e volta no tempo, ora retratando a vida pessoal de Jonathan Larson (1960-1996), ora se concentrando em seu processo criativo, ainda que seja impossível dissociar uma do outro. Vivido por Andrew Garfield com sua competência usual, a produção de Miranda se presta a uma retrospectiva da curta vida de Larson, entremeando as sequências que registram a angústia de uma existência meio besta, defendida com a ajuda de um subemprego medíocre e, em muitas situações humilhante — sobretudo quando se reconhece dotado de uma qualidade que os demais não têm —, seus momentos de catarse artística, em que consegue pôr para fora seus anseios e transforma a opressão em música e dança. O embate entre Larson e seu espírito atormentado, de um artista anônimo que ansiava por se fazer notar, por ser valorizado por seu verdadeiro ofício, como se sentisse que para ele o tempo, a exemplo do que acontece num filme de ação ruim ou num desenho animado inconsequente, menos elástico que para os outros, era regido pelo compasso de uma bomba-relógio — daí a referência lúdica de Miranda à onomatopeia do título —, é o grande mote de “Tick, Tick… Boom!”, registro dos bastidores silenciosos e torturantes da composição de um musical sobre um musical. Uma espécie de prelúdio de “Rent”, levado à cena em 1996, um dos shows de maior prestígio na Broadway ainda hoje.
Miranda viu “Rent” em 1997, ao celebrar a passagem de seu 17º aniversário. Foi quando entendeu, afinal, que musicais poderiam se estender sobre coisas muito menos grandiosas que os conflitos éticos de uma vedete dividida entre dois amores em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como em “Cabaret” (1972), ou de um nonsense incomodamente transformador, mostrando a cadeia como cenário para duas assassinas dos anos 1920 revelarem suas aspirações, caso de “Chicago” (1975). Musicais também são capazes de dar voz ao homem comum, especialmente àquele que tinha tanto a dizer. Anos depois, já na Universidade Wesleyan, em Connecticut, lhe veio a inspiração para o texto de seu primeiro trabalho no gênero, “In the Heights” (2005), cuja história transcorre num dos tantos bairros da Nova York onde, como seu ídolo, sonhava com o reconhecimento, a fama, o sucesso. “In the Heights” foi o vencedor do Tony, o maior prêmio para espetáculos teatrais dos Estados Unidos, em 2008.
Andrew Garfield capta com muita sensibilidade a ideia de finitude, de urgência da vida — que em Larson, um completo estranho no ninho vindo de White Plains, a trinta minutos do centro de Manhattan, era ainda mais pulsante —, amalgamando à personalidade forjada pelo sofrimento do compositor uma base de confiança, que por sua vez escondia-lhe a grande ambição que o fazia viver: tornar-se famoso por seu dom e conseguir sustentar-se só com ele. A instabilidade emocional de Larson — incapaz de conduzir o namoro com Susan, de Alexandra Shipp, ao passo que também quase perde Michael, interpretação memorável de Robin de Jesús, o amigo de infância com quem mora — torna-se o gatilho para que ele resolva situações fundamentais em sua carreira ainda verde ao mesmo tempo em que perde o controle sobre sua intimidade.
Aludindo a quadras inesquecíveis da vida de Jonathan Larson, a exemplo do contato com Stephen Sondheim — nem tão próximo quanto Miranda faz crer —, o maior artista vivo do teatro americano, a quem homenageou com “Sunday”, uma menção à “Sunday in the Park with George”, de Sondheim, “Tick, Tick… Boom!” não desaponta nem mesmo quem esperava ver no protagonista a aura de grande autor, mas só encontra o homem imaturo, egocêntrico, perdido em seus devaneios criativos. No mínimo, se percebe que essa é uma história de um sujeito comum, digna de ser contada. Os artistas também sofrem (os honestos, pelo menos).
Depois de presenciar a morte de amigos, esses, sim, íntimos, tombados pelas doenças oportunistas que, agravadas pela até então desconhecida aids, maltratavam ainda mais corpos já fustigados pelo abuso de drogas, chegou a hora de Jonathan Larson, morto em decorrência de um mal tanto mais obscuro, uma tal de síndrome de Marfan, que lhe interditou o fluxo sanguíneo na aorta e não permitiu que assistisse à estreia de “Rent”, em cartaz por mais de uma década, até 7 de setembro de 2008. Larson estava a dez dias de completar 36 anos.
Filme: Tick, Tick… Boom!
Direção: Lin-Manuel Miranda
Ano: 2021
Gêneros: Biografia/Drama/Musical
Nota: 8/10