Inteligente, selvagem e perturbador, filme que acaba de estrear na Netflix fará 90 minutos parecerem o resto de sua vida Divulgação / Universal Pictures

Inteligente, selvagem e perturbador, filme que acaba de estrear na Netflix fará 90 minutos parecerem o resto de sua vida

Há dois grupos de pessoas: vítimas e algozes. O primeiro demanda de quem tenha a pretensão de o integrar a coragem de soldados indo para a guerra, e muitos desses amam a guerra apenas pelo que ela representa para si mesmos, nada a ver com o respeito a valores como pátria, honra, tradições, caros a qualquer povo que se suponha civilizado, que se entenda digno da consideração do resto do mundo. Obedecendo a seus instintos mais primevos, o homem foi se deixando inebriar pelo cheiro de pólvora queimada e abdica da diplomacia sem pestanejar, preferindo resolver suas pendências valendo-se da força quando uma boa conversa trataria de evitar carnificinas que, não raro, começam por causa de um mal-entendido sem importância. Malgrado os incontáveis mistérios da existência, muito mais do que nossa vã filosofia tem o condão de imaginar, como disse aquele bardo inglês, é pelo rigor da vida como ela é e por sua intransigente defesa que devemos pautar nossa conduta. Tentamos, alguns menos que outros, e uns poucos com convicção, e o perigo reside precisamente aí. Há mil descaminhos ao longo de uma vida de um homem e da humanidade, e todos eles, por mais retos que venham a parecer, conduzem a um único fim: a perdição.

A vida de todo mundo dá um filme e, exatamente por isso, viver deveria ser sagrado, não interessa de quem pudéssemos estar falando. Todos somos dotados de nossas grandes qualidades e das fraquezas que nos humilham, mas também nos fazem dignos, mas só quando as reconhecemos e delas não nos orgulhamos nem temos vergonha, e é dessa forma que elas nos servem de algum conforto e muito aprendizado. Craig Zobel centraliza discussões filosóficas de altíssima potência no thriller “A Caçada” (2020), em que ousa tecer comentários acerca do modo grotesco como os barrados no salão nobre da vida são vistos pelos de cima. Aqui, Zobel redobra a carga de crueza e desce aos pontos mais abissais do espírito do homem, convencido de que suas metáforas sobre armamento de civis, racismo, preconceito social de ricos contra pobres (ou menos ricos, a se tomar como medida de comparação determinadas nações periféricas) e intolerância política — todos esses expedientes minuciosamente elaborados pelo lado mais nebuloso da alma humana para, com maior ou menor índice de violência, subjugar a própria alma humana —, batem em alvos a que bala nenhuma pode chegar.

Há lances particularmente saborosos em “A Caçada”. O roteiro de Damon Lindelof e Nick Cuse abre mostrando Richard, o multimilionário vivido por Glenn Howerton, humilhando a aeromoça Liberty, de Teri Wyble, mas com a sutileza de quem só frequenta a primeira classe de aviões luxuosos. O texto de Lindelof e Cuse tem pérolas como fazer Liberty oferecer a Richard caviar osseta, o que ele recusa, porque já o havia comido na noite anterior e decerto estava enjoado da iguaria. O personagem de Howerton retruca querendo saber se ela já havia provado caviar, e é quase palpável o constrangimento de Liberty ao ser forçada a admitir que, apesar de ter servido o acepipe incontáveis vezes ao longo da carreira, nunca ter podido saber, afinal, o que é caviar. Delicadezas semânticas dessa envergadura são apenas o ponto de partida para o carrossel de barbaridades que define a perseguição do título, sequências que se destacam pelo cuidado da equipe de efeitos visuais e pela fotografia de Darran Tiernan, magistral ao compor bem tanto em cenários abertos e ensolarados como nas cenas em que a penumbra insinua o suspense que vai se estender até o desfecho, momento em que a aeromoça Liberty consegue sua sublime vingança, patrocinada por uma mulher nada doce.

Betty Gilpin entra na história sob o olhar assustado de Emma Roberts. As duas foram dispostas como animais num campo aberto, como se deixadas para morrer, uma vez que estão amordaçadas com um objeto de que só podem se livrar se encontrarem a chave. Conhecida como Yoga Pants, “calças de ioga”, a personagem de Roberts embeleza o quadro, mas é a dureza dos traços retos de Gilpin que passam a dar as cartas no enredo. Sua Crystal Creasey é a típica anti-heroína, muito menos interessada pelo bem da coletividade que em salvar a própria pele. Alguns trechos depois, se tem claro do que se está falando: uma legião de pessoas foi drogada e conduzida a um lugar incerto, possivelmente na Europa Oriental, para servir de caça a quem pudesse pagar pela brincadeira.

Gilpin é quem, de fato, sustenta o filme. Crystal dá dimensão prática ao farelório político acerca de malandragens à esquerda e à direita, que não se sustenta, e quiçá até inventa uma nova modalidade de feminismo, baseada na imitação do que o patriarcado tem mais vil, o que certamente desagrada a todos. A brutalidade por que Zobel opta para levar seu filme vai se tornando até aceitável, mágica conseguida em muito por causa da maneira como Gilpin entende sua protagonista, mulher sem tempo para mimimi.


Filme: A Caçada
Direção: Craig Zobel
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Terror/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.