Violento e paranoico, suspense brasileiro na Netflix é um soco no estômago Divulgação / Vitrine Filmes

Violento e paranoico, suspense brasileiro na Netflix é um soco no estômago

Casamentos podem reservar experiências simplesmente transformadoras, para o bem e para o mal. Não passa pela cabeça de ninguém investir boa parte de sua vida numa espécie de pacto de boas intenções — que para uns dura o tempo da própria eternidade, mas para outros tantos representa pouco mais que nada —, já sabendo de antemão que todos os esforços quanto a manter os laços que num dia especialmente feliz uniram esses dois estranhos seriam debalde. Demonstrar um sentimento qualquer de gratidão à vida, algo que ao menos insinue reconhecimento para com o destino, é uma atitude no mínimo honrada. Ninguém escapa às próprias escolhas, bem como ninguém consegue evitar sua natureza, e desse modo, torna-se um pouco mais difícil mudar o caos em ordem, fantasia que sempre povoa a imaginação de certos apaixonados. Ao contrário: quanto mais claro se mostra o amor, mais recrudesce a certeza de que ele não é para todos, malgrado muitos desses estejam em casamentos felizes. Para essas pessoas, dividir com alguém a aventura de viver resume-se a dormir e acordar na mesma cama. Sem sonho nenhum ao longo da noite infinita.

O inferno e o paraíso da vida a dois vêm embalado numa trama cheia de muitos segredos e poucas revelações em “O Silêncio do Céu” (2016). Filmado no Uruguai pelo brasileiro Marco Dutra, a história de um amor que parece desde sempre fadado à tragédia, mas que resiste — o que não quer dizer que seja feliz —, reproduz o que muita gente vive na vida como ela é, sem o glamour das estrelas das telenovelas e tampouco a condescendência de roteiristas engajados. A esse propósito, o texto de Caetano Gotardo, Lucía Puenzo e Sergio Bizzio, em cujo romance o filme é inspirado, constrói um enredo que prima pela discrição, que desafia a sensibilidade do público no que toca a ir além do conhecimento imperfeito e ligeiro das coisas, que fala do medo de superar medos, de poucas palavras, e preciso assim mesmo. Gotardo, Puenzo e Bizzio, juntam boa parte das emoções que Dutra, com muita técnica, transforma em imagens. O resto é com quem assiste.

É um prazer ver Carolina Dieckmann, eterna musa de garotos meio perdidos de meados dos anos 1990, num trabalho mais circunspecto, e deleite ainda maior é vê-la sair-se tão bem. A Dieckmann cabe abrir a sequência de enganos e desenganos de Diana, sua anti-heroína, e Mario, o marido interpretado por Leonardo Sbaraglia, que também se supera no papel de um homem sem qualidades. As cenas que servem de introdução ao filme e de esteio para que Dutra avance pela angústia imanente à vida do casal, são fortes e comoventes a um só tempo, deixando muitas questões em aberto, e solucionando algumas também. O que permanece encoberto de forma tão perfeitamente obscura a ponto de levar tanto uma como o outro a supor que são felizes? O que faz Diana entender que seu papel é mesmo tolerar anos de indiferença, maldisfarçados de respeito a sua individualidade, ao passo que definha numa relação que tresanda a olhos vistos? E, por fim, de onde o personagem de Sbaraglia consegue tamanha desfaçatez para seguir imaginando que vive bem com a mulher? 

O diretor se esforça por responder todas essas indagações no derradeiro segmento de “O Silêncio do Céu”, drama sobre duas pessoas que parecem ter se amado num tempo não muito distante, mas que hoje estão completamente apartadas uma da outra, a ponto de não saberem mais o que se passa dentro da própria casa em que coabitam. Dutra replica narrativas lamentavelmente cada vez mais comuns aos nossos dias, preterindo novos episódios de violência para concentrar-se na composição psíquica de Diana e Mario, um casal estranho, que se habitua à infelicidade e dela não consegue prescindir.


Filme: O Silêncio do Céu
Direção: Marco Dutra
Ano: 2016
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 8/10