Amor, casamento, fé e religião podem manter uma relação visceralmente próxima, mas são coisas muito distintas. Machado de Assis (1839-1908), numa de suas máximas que hão de atravessar os séculos, atribui a criação do amor e da fé a Deus, mas como quase tudo na vida do homem é autoengano e ilusão, o diabo pôde fazê-lo imaginar que o amor só se legitima com a devida união de um e outro apaixonado mediante um sacerdote, que a oferta a Deus, e que a fé, se verdadeira, se submete a todos os dogmas — às vezes intrigantemente caprichosos — de uma certa doutrina. Se a vida fosse um mar de rosas; se nascêssemos sem provocar as lancinantes dores à mulher que nos gera; crescêssemos rodeados do amor que toda criatura humana merece; tornássemo-nos tudo o que podemos ser, o que somos em essência, o que a natureza e o próprio Senhor de todas as coisas planejam para nós há milênios, desde o princípio dos tempos, encontraríamos o amor na primeira esquina, subiríamos ao altar e celebraríamos essa descoberta convictos de que nunca mais teríamos olhos para quem quer que fosse. Mas a vida como ela é cospe-nos à cara e faz tábula rasa de nossas fantasias.
O mistério do amor nem sempre se permite desvendar, mas há quem passe uma vida a perseguir tal intento, sem nunca se dar por vencido e dotado de alguma segurança de que, como um cometa, ele virá e irá cair no lugar exato. É justamente sobre a ideia romantizada do amor eterno que Sebastian Siegel deseja se estender em “Graça e Coragem” (2021), história verídica de um romance que acaba da mesma forma como que havia começado: envolto pela magia de uma ligação tão poderosa que nem a morte pode quebrar. Baseado no livro homônimo do filósofo Ken Wilber, o filme de Siegel não tem nenhum receio de soar piegas, cafona, açucarado demais — e em diversas passagens é mesmo —, porque a narrativa de Wilber também o é. No roteiro, o diretor não perde uma oportunidade de frisar esse aspecto excessivamente sentimental, lançando mão de algumas estratégias para não afogar o espectador em lágrimas. A primeira e mais insinuante é dar a impressão de que o final feliz é mera questão de se aguardar que expirem os 111 de minutos de projeção, tempo que poderia ser enxugado. Malgrado não seja um enredo que se destaque pelo arrojo, as idas e vindas que cercam o casal de protagonistas garantem que o público creia que esta é mesmo a história de um amor incomum.
Mena Suvari abre “Graça e Coragem” na pele de Treya Wilber, que se dirige a um auditório lotado. Treya relembra a ocasião em que conheceu o marido Ken, de Stuart Townsend, fala de como os dois eram ingênuos, de como estavam enamorados, da maneira como consagravam-se um ao outro. A história parte de 3 de agosto de 1983, quando a personagem de Suvari, competente em driblar as armadilhas de um tipo tão pouco dado a experimentações, conhece aquele que virá a ser, primeiro, uma paixão arrebatadora, e esse segmento apresenta problemas. Townsend parece ficar ainda mais hipnotizado por Ken do que Treya, e faz com que os diálogos melosos do autor do romance, lamentavelmente aproveitados por Siegel na íntegra, passem do inofensivo mau gosto à farsa mais descarada num átimo. Felizmente, conta com uma parceria bastante ciosa de seu papel, que contorna esses arroubos de cantadas baratas e psicanálise de botequim — Wilber é descrito a certa altura como um dos maiores especialistas em consciência da atualidade, comparável a Freud e Buda (!).
Do segundo ato em diante, o longa envereda para o drama pessoal de Treya, sua peregrinação por consultórios de médicos das mais variegadas correntes, até que Siegel completa o giro pela jornada de seus personagens centrais tornando ao ponto de largada, momento em que a agora esposa do tal filósofo expõe particularidades de sua vida de casada ao passo que combatia o inimigo que devorava. Definitivamente, a maior graça do filme é a atuação de Suvari, que chega a eclipsar a própria trama.
Filme: Graça e Coragem
Direção: Sebastian Siegel
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 7/10