O filme, alucinante e subestimado, que é um dos mais perturbadores da história do cinema está na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

O filme, alucinante e subestimado, que é um dos mais perturbadores da história do cinema está na Netflix

Todos passamos por momentos em que a solidão se revela especialmente medonha, e a culpa não deixa de ser nossa — de uns mais que de outros, é verdade. Há pessoas para quem bênçãos parecem maldições, vantagens naturais se tornam grandes adversários e cenários desabridamente favoráveis acabam sempre por ocultar situações que se desdobram numa cornucópia de distúrbios de toda ordem. Da mesma forma que indivíduos especialmente desassistidos conseguem tirar força de suas vulnerabilidades, avançando sem pena sobre inimigos visíveis e ainda mais sobre os que não se deixam ver, há muita gente agraciada com o melhor que a vida tem a oferecer e, mesmo assim, desenvolvem um talento espantoso quanto a transformar beleza em hediondez. Ainda que o mundo fosse o mar de rosas que uma minoria alienada pinta, essas pessoas nunca teriam dificuldade alguma em fazer com que as flores logo fenecessem e só o olor de morte e de degradação resistisse.

A glória e a desonra sempre caminharam de mãos dadas, e existe quem pensa que esse é o melhor dos mundos, bem como existem filmes sem nenhuma intenção de respeitar possíveis limitações do espectador e lhe exigem não menos que tudo. Cameron Crowe se supera na capacidade de devanear acerca de temas de inescapável relevância para a humanidade e faz de “Vanilla Sky” (2001) uma viagem quase sem fim rumo ao lugar mais assustador da alma de um homem. Crowe decerto chegou a um dos filmes mais herméticos já feitos, e ao mesmo tempo, um dos mais claros, cuja obviedade, tão bem escondida, assusta. Algumas cenas são o bastante para que se conclua que as tramas em que “Vanilla Sky” se divide — todas tão suficientemente maduras que dariam cada uma um outro filme, quiçá até mais longo que os cerca de 140 minutos da narrativa central — apontam para dúvidas e falsas certezas que todos já tivemos em maior ou menor intensidade no decorrer da vida. E a esse propósito, o ideal que se passem uns bons anos entre o primeiro momento em que se toma contato com tal sequência de elucubrações a respeito de como se deve viver e uma segunda apreciação do bom trabalho de Crowe.

Reproduzindo argumento já visto em “Amnésia” (2000), dirigido por Christopher Nolan, com um protagonista à Patrick Bateman, de “Psicopata Americano” (2000), levado à tela por Mary Harron, o roteiro do diretor, um remake de “Preso na Escuridão” (1997), do espanhol Alejandro Amenábar, dá vida a David Aames, o magnata muito problemático da composição quase irretocável de Tom Cruise. Aos 33 anos — Cruise tinha 39 quando das filmagens —, Aames é o todo-poderoso publisher de um grupo editorial, cargo a que foi assunto sem nenhum esforço, mas com boa medida de dor, por ocasião da morte dos pais num acidente de carro há alguns anos. Numa das tantas festas que oferece no apartamento nababesco em que mora sozinho, um dos solteiros mais cobiçados do hemisfério norte dá de cara com Julie Gianni, a “amiga sexual” (claro que no filme diz-se algo mais explícito) vivida por Cameron Diaz, de quem tenta se livrar com certo sacrifício e que não fora convidada. Pouco depois, chegam seu melhor amigo, Brian Shelby, excelente participação de Jason Lee, acompanhado por Sofia Serrano, a morena de olhos penetrantes interpretada por Penélope Cruz. 

Praticamente tudo o que acontece de importante em “Vanilla Sky” começa, ainda que obliquamente nessa festa, e é mister se prestar máxima atenção na personagem de Diaz. Aquela expressão chula a que os machos da história recorrem para mencioná-la, detalhe aparentemente tolo e que se perde fácil em meio a um turbilhão de eventos paralelos, termina sendo o gatilho da desgraça que colhe Aames, e doravante sua vida nunca mais torna ao leito. Crowe brinca com diálogos paulatinamente mais complexos, incorporando os cacos nascidos das improvisações de Cruise e Cruz, enquanto vai acrescentando os outros elementos que sofisticam ainda mais seu filme, como a discussão de uma possível (e até provável) vida eterna, deixando claro seu ponto de vista, acertadamente desfavorável. A entrada em cena de Curtis McCabe, o psiquiatra de Kurt Russell, liquida qualquer dúvida residual: este é um filme para ser assistido muitas vezes, de preferência com largos intervalos.


Filme: Vanilla Sky
Direção: Cameron Crowe
Ano: 2001
Gêneros: Thriller/Ficção científica/Romance
Nota: 8/10