40 anos de som e fúria dos Titãs

40 anos de som e fúria dos Titãs

É sempre estranho ver o rock e seus artistas envelhecendo. O estranhamento sempre faz lembrar a frase clássica da música “My Generation” (1965), dos ingleses do The Who: espero morrer antes de ficar velho. Neste ano, o grupo brasileiro Titãs completa 40 anos de trajetória, com direito a um longo documentário da série “Bios”, da plataforma de streaming Star+. Da formação original de oito integrantes, restam apenas três deles que estão lançando agora o álbum “Olho Furta-Cor”.

A música “Um morto de férias” (2001) já apontava a consciência para a passagem do tempo, sobretudo num segmento associado à juventude: “Sei que não sou mais jovem, que não sou velho também/ Provável é que nem me notem, queriam que eu fosse alguém”. Hoje, no balanço dos anos e da obra, é possível ver que os anos de ouro dos Titãs foram o período de 1986 a 1991, quando ainda estava na banda a figura de Arnaldo Antunes e se viu a potência máxima criativa do rock brasileiro.

O big bang dos Titãs foi uma escola de vanguarda de São Paulo, o Colégio Equipe. Pais de classe média intelectualizada colocaram os filhos num ambiente de jovens professores que apostaram no ensino o mais amplo possível. Resultado: um ninho criativo que gerou músicos, artistas plásticos, escritores de primeira linha, como Nuno Ramos (o mais completo criador brasileiro em atividade). Ali, também estavam Arnaldo Antunes, Nando Reis, Paulo Miklos, Sergio Brito, Branco Mello e Marcelo Fromer.

O rock brasileiro dos anos 1980 é pós-tudo, vindo depois do “romantismo revolucionário” da MPB de Chico Buarque e Caetano Veloso. Pesava mais o que vinha de Nova York, Londres e Jamaica (a influência do reggae é imensa). A herança brasileira entrava pelas bordas e frestas. O que contava era a energia por vezes desgovernada do punk e da new wave de língua inglesa. Ocorreu um salto adiante, com visão desiludida, mas esperançosa da Nova República, iniciada em 1985.

Os dois primeiros discos (“Titãs”, de 1984, e “Televisão”, de 1985) foram esboços, tendo tentativas e erros. Havia a vontade de ser popular, quase brega, como se vê patente em “Sonífera ilha” (“Não posso mais viver assim ao seu ladinho/ Por isso colo o meu ouvido no radinho de pilha/ Pra te sintonizar sozinha numa ilha”). A canção “Televisão” expandiu o ponto de vista crítico e irônico que daria os melhores resultados nos anos seguintes: “É que a televisão me deixou burro, muito burro demais/ E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais”.

Fase “cabeça”

Os primeiros sinais do que viria apareceram na música “Massacre”, que fecha o álbum “Televisão”. Trata-se de um punk rock, beirando o estilo hardcore. Não há uma voz única para cantar a letra em italiano e português. Os vocais saem na forma de um coro selvagem, gritado, que seria a marca de faixas do disco “Cabeça Dinossauro” (1986). Esta obra foi o ponto de virada dos Titãs. Naquele mesmo ano, saíram os discos clássicos “Dois”, do Legião Urbana, e “Selvagem?”, do Paralamas do Sucesso.

Distribuído pela gravadora, o texto de apresentação de “Cabeça Dinossauro” vinha com assinatura de Paulo Leminski, que enxergou a dimensão de tudo: “Vocês demoliram os cinco pilares da ordem social, a polícia, o Estado, a Igreja, a família e o capitalismo selvagem. Agora chegou a hora de demolir as coisas de dentro. (…) Os Titãs é o que restou do rock, suas letras são o que restou de um país falido, um vice-país, vice-governado, vice-feliz, vice-versa”.

É o país falido em diversos sentidos que os Titãs vão capturar nas letras e na urgência do som. As músicas traziam a distorção brutal das guitarras do punk (“Polícia”, “Porrada”, “Tô cansado”) e a eletrônica (“Cabeça Dinossauro”, “Bichos escrotos”, “O quê”). Pela mão de Arnaldo Antunes, as letras flertavam com a poesia concreta dos irmão Haroldo e Augusto de Campos. A sonoridade trafegava pelo funk vanguardista dos Talking Heads e pelo pós-punk urgente das paulistanas Mercenárias.

Os Titãs soltavam a voz em “Igreja”, com Nando Reis: “Eu não gosto de padre/ Eu não gosto de madre/ Eu não gosto de frei/ Eu não gosto de bispo/ Eu não gosto de cristo/ Eu não digo amém”. Versos curtos para serem gritados, cantados, celebrados, como em “Polícia”: “Polícia para quem precisa/ Polícia para quem precisa de polícia”. Ao mesmo tempo, as Mercenárias entoavam: “A polícia vem, a polícia vai/ Onde não é chamada” e “O jovem rebelde e criativo/ Questiona e desobedece ao poder/ Daí encontra com Jesus/ E as leis da Santa igreja vai obedecer/ Vai se foder!”.

Em 1986, após o fracasso do Plano Cruzado, o Brasil mergulhou na crise profunda, cujo resultado seria o transe que desembocou na eleição de 1989. A incapacidade de entender o movimento levou ao desastre coletivo no período que os Titãs se tornaram intérpretes da tragédia brasileira, juntando pessimismo e energia brutal na exploração dos limites do rock. Como disse Leminski, o “Cabeça Dinossauro” demoliu os pilares do país.

Brasil banguela

A urgência da crise brasileira gerou a segunda obra-prima dos Titãs em 1987: “Jesus não tem Dentes no País dos Banguelas”. A sonoridade continua com a distorção dos punks, mas a sofisticação da eletrônica sobe mais degraus. Está no disco a clássica “Comida”: “A gente não quer só comida/ A gente quer comida, diversão e arte/ A gente não quer só comida/ A gente quer saída para qualquer parte”. A letra é um manifesto político, poesia concreta, marginal, construindo a ponte do rock com a literatura.

A desilusão com a Nova República aparece na também clássica “Lugar nenhum”: “Não sou de São Paulo/ Não sou japonês/ Não sou carioca/ Não sou português/ Não sou de Brasília/ Não sou do Brasil/ Nenhuma pátria me pariu”. O horizonte de expectativas se encurtara de vez. A canção ecoa o poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade: “O Brasil não nos quer! Está farto de nós!/ Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil// Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.  

O mergulho na matéria brasileira se acentuou no disco seguinte, “Õ Blesq Blom” (1989). Até hoje é o álbum que melhor reuniu a urgência do rock, a eletrônica e a musicalidade da MPB. Foi um trabalho precursor para a explosão criativa que viria no disco “Da Lama ao Caos” (1994), dos pernambucanos Chico Science & Nação Zumbi. Músicos brasileiros absorveram sons estrangeiros, nacionais e devolveram tudo numa leitura originalíssima e contemporânea.

A canção “Miséria”, de “Õ Blesq Blom”, é um manifesto estético e político no sentido elevado do termo: “Miséria é miséria em qualquer canto/ Riquezas são diferentes/ Índio, mulato, preto, branco/ Miséria é miséria em qualquer canto”. Também está no disco a clássica “O pulso”, na qual uma lista de doenças do corpo humano se funde às doenças do espírito e da sociedade. Trata-se de um diagnóstico da situação do país e das pessoas, culminando na morte presente na canção “Flores”.

Foram três discos impecáveis e precursores de uma virada estética a partir da década de 1990. Os Titãs conseguiram esticar a corda do mercado e manter a radicalidade criativa. Uma produção artística de alto nível — ou o “biscoito fino” para as “massas” de Oswald de Andrade. Como manter o padrão tão elevado? O limite dos Titãs foi o disco “Tudo ao Mesmo Tempo Agora” (1991), o último com a participação de Arnaldo Antunes. Foi um fracasso comercial e ponto culminante de criação.

Desde a imagem da capa, é o corpo humano que domina o universo de “Tudo ao Mesmo Tempo Agora”. Canções como “Clitóris”, “Isso pra mim é perfume” e “Saia de mim” exploram as secreções corporais, os órgãos, a sexualidade. Ficou claro que o grupo havia batido no teto, não havendo mais o que desbravar. A partir daquele ponto, Arnaldo Antunes começou uma impressionante carreira solo. O mesmo ocorreria ano depois com Nando Reis, que se torna um compositor popular por excelência.

Os Titãs continuam na estrada desde então, restando os sobreviventes Sérgio Brito, Tony Bellotto e Branco Mello. Surgiram músicas de sucesso como “Epitáfio”, “Domingo” e “Será que é isso que eu necessito?”. Nada mais foi como antes. Em 1991, a música “Eu vezes eu” não teve repercussão, porém é um dos epitáfios dignos para marcar a trajetória de um grupo ou de um artista: “Eu vezes eu/ Espalhados em mim/ Eu mínimo/ Múltiplo comum // Eu menos eu/ Do que resta de mim/ Eu máximo/ Único nenhum”.