O filme magnífico da Netflix que vai tocar seu coração e te fazer ter vontade de rir e chorar Atsushi Nishijima / Netflix

O filme magnífico da Netflix que vai tocar seu coração e te fazer ter vontade de rir e chorar

Não é exatamente verdadeira a máxima de Tolstói sobre a semelhança fundamental entre as famílias felizes e o signo da exclusividade que rege as famílias pouco afortunadas. Analisando-se a questão com um pouco mais de cautela, conclui-se logo que, também no infortúnio, os microcosmos compostos por pai, mãe e filhos, hoje muito mais amplos, células minúsculas do organismo mastodôntico chamado humanidade e fracassados por razões sobre as quais não é custoso dissertar, têm vários pontos de intersecção uns com os outros. Não são nada insignificantes os casos de famílias bombardeadas pelo egocentrismo sem medida de quem deveria ser o primeiro a zelar pela integridade de todos, como se uma das instituições elementares do tecido social estivesse a perigo ameaçada justamente pelo fogo amigo de uma guerra emocional. É como se o mundo invertesse seu fluxo de sempre, as pessoas começassem a andar para trás, ébrias de mágoas represadas, a Terra se comprimisse contra seu próprio eixo e a humanidade, afinal, voltasse ao seio do macaco.

Noah Baumbach vem se tornando um diretor bastante atento às diversas nuanças de famílias, seus descaminhos e suas glórias. “Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe” (2017) é um painel multicolorido — com direito a muitas notas cinzentas — de pessoas que se amam (e que também se odeiam), mas que não conseguem desistir umas das outras, tampouco do sentimento avassalador que as mantém indelevelmente juntas, para o bem ou para o mal. Dois anos depois, seguindo as pegadas de um gigante, Baumbach ratificaria a fama de cronista das delicadas relações humanas e daria um pouco mais de alma à Hollywood. “História de um Casamento”, aquele filme tão despretensioso quanto raro em que Laura Dern arrebatou Oscar, Globo de Ouro, BAFTA e Critics’ Choice Award de Melhor Atriz Coadjuvante na pele de uma advogada especializada em divórcios, ironia sutilíssima e muito a propósito, tem a participação (mediúnica, claro) de Ingmar Bergman (1918-2007). O sueco talvez tenha o sido o primeiro grande nome do cinema a apontar com refinamento, escapando de condescendências higienizantes, o farisaísmo de duas pessoas que até podem ter se querido muito bem um dia, mas que se tornam um fardo uma para a outra, ainda que não o percebam — e espalham todo esse veneno entre os que estão e os que passam por suas vidas.

Harold Meyerowitz é o patriarca metido a galã de Dustin Hoffman, um octogenário que se recusa a envelhecer — e isso não é um elogio. Casado pela quarta vez (terceira, se desconsiderarmos um dos enlaces, anulado por uma razão que não vem à superfície, mas sobre a qual se pode conjecturar mil hipóteses, todas abertamente inclinadas para ele), Harold, um artista plástico ostracizado precocemente, se vê subitamente cercado dos filhos, e parece muito incomodado com essa realidade. Danny, o músico frustrado (e excelente) que vive de bicos na construção civil, performance de um Adam Sandler cuja maturidade artística desponta a olhos vistos ano após ano, como se verifica em “Arremessando Alto” (2022), de Jeremiah Zagar; o corretor de imóveis Matthew, de Ben Stiller, previsível, um tanto materialista, mas sem dúvida a ilha de lucidez em meio aquele oceano de loucura; e Jean, a solteirona assexuada de Elizabeth Marvel, nem tão sensível e arguta quanto Danny, mas infinitamente mais estimulante que Matthew, tentam adivinhar as vontades e fazer os gostos do pai, o que chega a exasperar a plateia em dada altura do roteiro. Juntam-se ao trio Maureen, a atual esposa de Harold vivida por Emma Thompson, quase irreconhecível, e Eliza, papel da encantadora Grace van Patten, filha de Danny e prestes a ir embora a fim de viver os sonhos que o pai guardara para si. Não por acaso, as personagens de Thompson e Van Patten roubam a cena, malgrado não apareçam tanto, justamente por terem vida além da condição de satélites do macho-alfa (e pré-histórico).

Há a menção a um inventário, desnecessária e confusa, mas logo se tem claro que os seis permanecem juntos porque, a despeito da força que Harold faz para ser desagradável, grosseiro, pedante, tóxico, como se tem dito ultimamente — a sequência dos personagens de Hoffman e Stiller no restaurante é um achado —, o amor consegue se provar sobranceiro. É impossível não sentir raiva de Harold, só para, logo em seguida ter-lhe pena e até gostar um pouquinho dele. A vontade de rir e chorar ao longo do filme, muitas vezes numa única cena, quase sem diálogos, deixa boquiaberto qualquer um que valorize o bom cinema e o bom viver. Isso é técnica, mas é também sensibilidade em estado puro.


Filme: Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe
Direção: Noah Baumbach
Ano: 2017
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.