Filme com Meryl Streep na Netflix vai elevar a mente, relaxar o corpo e descomplicar seu final de semana Divulgação / Universal Pictures

Filme com Meryl Streep na Netflix vai elevar a mente, relaxar o corpo e descomplicar seu final de semana

Se casamentos são difíceis, separações têm o condão de exacerbar sentimentos nunca postos para fora malgrado muitas vezes óbvios; fazer aflorar as contrariedades incontestáveis, mas ocultas pelas coisas não ditas que apodrecem em nós; e macular algumas relações um tanto mais profundas, que se criam imunes a quaisquer interferências. Parece que tudo se reduz a uma questão de conveniência: uma vez que se chega à conclusão que o casamento atrapalha mais que gera algum efeito benéfico para quem nele se encontra, opta-se depressa por encerrá-lo, como se tudo fosse uma brincadeira de criança, de regras tão descabidas quanto cambiáveis. Os jogadores operam nessa frequência, não exatamente desmazelados, mas longe de se importar com a vitória. Como na vida tudo tem muito mais que dois lados — e mil possibilidades de desfecho para uma mesma narrativa, com interpretações as mais variadas —, o divórcio, cristalização melancólica do fim de algo que deveria ser eterno, pode até não se converter num trauma assim tão grande. 

É o que se depreende de “Simplesmente Complicado” (2009), onde a diretora Nancy Meyers fantasia mundos ideais em que ex-maridos e ex-esposas mantêm seus laços como se nada se tivesse passado, ainda que o tempo e a própria vida não parem (nem retrocedam) jamais. Pressuposto tão simples é, contudo, ignorado por grã-finos entediados, dispostos a avançar sobre a lógica com a fúria de cães à roda da presa, fustigando-a a reagir, mas doidos para que desista de vez. Meyers se vale de um roteiro assombrosamente meticuloso — com destaque para a fotografia de John Toll, que tira o fôlego ao realçar a luminosidade   terapêutica de Santa Bárbara, no centro do litoral da Califórnia — a fim de amenizar os inúmeros espinhos do argumento central, que acaba por se transformar numa genuína ode ao amor líquido de que fala Bauman. O público vai absorvendo esse conceito ao passo que se entretém com interpretações de alta performance, encabeçadas por uma mestra de raro talento em seu ofício.

Meryl Streep é uma entidade. Ninguém encarna tipos tão distintos entre si com a naturalidade — muitas vezes com a desfaçatez — de Streep, descrita por 99,9% dos colegas como uma mulher refinada, mas muito modesta, e capaz de aliar técnica e instinto até escovando o cabelo ao toucador. É impossível não se apaixonar por Jane Adler, e esse seu predicado tem a força de uma maldição: divorciada há uma década, de um momento para o outro Jane começa a topar com o ex-marido Jake, de Alec Baldwin, com uma constância perturbadora, o que degringola na reaproximação dos dois e no novo envolvimento amoroso que guia boa parte das duas horas de projeção, divididas de forma meio esquemática demais, um deslize menor da diretora — o núcleo das amigas da protagonista, cujo hobby favorito é lhes preparar alguns dos famosos acepipes de seu restaurante, some da história sem cerimônia. Tudo poderia não passar de uma traquinagem inconsequente de dois sessentões já meio cansados da rotina (Baldwin é cerca de dez anos mais novo que Streep, mas o frescor da atriz, sempre renovado quando se faz o que se gosta, lhe subtrai a diferença), não fosse Jake ter engatado uma relação com Agness, vivida por Lake Bell, mãe solteira de Pedro, do adorável Emjay Anthony, já na esteira da separação. O texto de Meyers é peremptório ao sugerir o desconforto do advogado em continuar com Agness, mas é forçado a reforçar o lugar-comum da falsa comodidade de um homem mais velho que encontra consolo para suas inseguranças de macho numa mulher vinte anos mais jovem, até que se depara com a constatação óbvia de que sua nova musa também se submete ao passar do tempo, se descobre infeliz e faz infeliz um batalhão de gente a seu redor.

A entrada em cena de Steve Martin como Adam Schaffer, o arquiteto que cuida da construção do anexo do palacete de Jane, traz ainda mais fluidez e leveza à narrativa, malgrado esteja sempre cercado de uma aura de elogiável circunspecção. Nas raras vezes em que Martin tem a chance de exercitar sua imbatível veia cômica, ele o faz de modo arrebatador, no timing exato e sem forçar a barra nem mesmo numa sequência cujo maior atrativo é o barato de maconha de dois sexagenários, mais um dos chavões a que se assiste em “Simplesmente Complicado”, replicado em “A Intrometida” (2015), levado à tela por Lorene Scafaria.

As subtramas que levam ao encerramento se assemelham mais a um purgatório em vida para Jane Adler, que deve ter sido condenada a expiar a culpa de Mary Fisher em “Ela É o Diabo” (1989), dirigido por Susan Seidelman. Em excetuando-se o recado meio misógino, Meyers proporciona diversão de alto nível, patrocinada, claro, por alguém tão complicadamente simples quanto Meryl Streep.


Filme: Simplesmente Complicado
Direção: Nancy Meyers
Ano: 2009
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 8/10