A influência de Cervantes sobre Machado de Assis

A influência de Cervantes sobre Machado de Assis

Nunca me decidi inteiramente entre Machado de Assis e Guimarães Rosa, e há nisto, mais que senso crítico, muito de tendência espiritual. Rosa — da família de titãs de Melville e Tolstói — concede a esperança que jamais contaminou a alma sobrecarregada do escritor fluminense, conhecido pelo pessimismo. O critério assim exposto, da idiossincrasia do leitor, não é inadmissível à luz da teoria da literatura.

Chegou-se mesmo a discutir qual deles, Machado ou Guimarães, seria o maior escritor brasileiro. Em enquete proposta pelo jornal “Folha de S. Paulo”, Machado venceu por larga maioria: 11 a 2. Os votos dados a Rosa, no entanto, serviram para lembrar que o consenso não é unânime. E são justificados: quem lê “Grande Sertão: Veredas” reconhece um gênio de estatura machadiana, que muitos contos magistrais apenas corroboram. Nos melhores momentos eles são equivalentes literários, tornando impossível uma escolha tão grave. Eu pinçaria de Tolstói ou Dostoiévski a solução oferecida por George Steiner aos maiores nomes da Rússia, para definir os brasileiros: “Eles proporcionam ao historiador de ideias e ao crítico literário uma conjunção única: são como planetas vizinhos, iguais em magnitude, perturbados pela órbita um do outro. Eles desafiam a comparação”.

Aqui o desempate é uma questão de gosto pessoal, em que pese ao leitor descobrir se seu temperamento é, segundo o parâmetro utilizado acima, épico ou dramático. É certo que acima de Machado de Assis, ninguém, e é a ele, que se antecipou a muitas discussões da literatura contemporânea, que dedico o presente estudo. As fontes literárias do escritor são diversificadas e bem conhecidas (Leopardi, Garrett, Schopenhauer…), mas reconhece-se a preponderância dos escritores ingleses em sua formação. Laurence Sterne teria lhe fornecido o modelo para a realização mais original, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Segundo se sabe, “Grande Sertão: Veredas” é que tem lastros com a Idade Média e com a cavalaria andante, e não o livro de Machado de Assis, a ponto de Otto Maria Carpeaux considerar o fluminense “um grande escritor vitoriano” (História da Literatura Ocidental). Mas Machado é sempre capaz de revelar novas facetas, uma delas a que se propõe examinar nas páginas a seguir. Meu objetivo é colocá-lo à prova, de acordo com uma leitura sugerida pelo escritor mexicano Carlos Fuentes.

Há, certamente, algumas criações ficcionais que se tornaram arquetípicas da condição humana, o que explica sua universalidade e imortalidade, atraindo para a sua órbita maior uma procissão de almas perplexas. Não é propósito deste ensaio discutir o caráter aparentemente cíclico da realidade, subjacente nesta premissa. A hipótese em vista é de que o significante é de algum modo único e permanente: o que muda é a forma de representá-lo. Parece-me que é isto o que se pode deduzir de um interessante ensaio sobre o conto (Uma história do conto), no qual Cabrera Infante afirma que “Proteus está muito próximo da prosa” ou, num sentido menos estrito, da “narrativa”, que no princípio bem poderia ter sido, na sua opinião, as pinturas rupestres de Altamira: “Esses contos seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça perdido no encalço de um cervo branco com um chifre na testa. […] Séculos mais tarde, outro contista pegou o mesmo conto, embelezou o cervo branco e o converteu em mito, ao chamá-lo unicórnio. Embora a experiência fosse alheia, tomou e fez seu o tema do unicórnio perdido. Muitos séculos mais tarde, outro contista enfeitou com metáforas (isto é, embelezou poeticamente) esse animal único com seu chifre. Passados outros tantos séculos, o homem que conta já havia aprendido a escrever (e, é claro, a ler), e outros animais e outros homens que se transformavam em animais povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era essa transcendência chamada religião…”

O que Cabrera quer dizer é que o mesmo motivo foi adquirindo formas inéditas cada vez que um novo artista o interpretou, numa contínua metamorfose que alcança os nossos dias e por certo a ultrapassará. Por isso, a Infante parece que Proteus personifica a história do conto. O escritor cubano estava pensando neste gênero narrativo quando imaginou que a analogia com o mito grego poderia explicá-lo, mas podemos acreditar que algo idêntico acontece também nos romances e novelas. Com isso acabou criando uma teoria, em que o significante mudaria ad eternum, ao sabor da paisagem, do tempo e da cultura: o indispensável é deixar as pistas que conduzem à sua origem. Certos personagens (análogos àquele “cervo branco”) encarnariam, da maneira que interessa a cada geração, algo que poderíamos chamar de “drama tautológico”, repisando modelos antigos para se pensar a condição humana. Podemos imaginar um ator que apenas trocasse de indumentária, mas cujo referencial fosse preexistente.

Este drama tautológico pressupõe um método, aliás, bastante conhecido, que é o da leitura como processo poético, gerando uma identidade entre determinadas obras e autores, muito observado precisamente em relação a Cervantes e seus herdeiros.

Provavelmente sem imaginar suas implicações futuras, Cervantes provocou uma verdadeira revolução literária quando seu maravilhoso personagem, Alonso Quijano, pôs-se a praticar um gesto absolutamente banal: ler; no caso, livros de cavalaria, aos quais devotara dias e noites e obcecadamente. O hábito de ler, tantas vezes repetido por outros personagens que foram criados depois — sugerindo encarnações do célebre fidalgo —, desencadeou uma das mais importantes tradições da literatura ocidental: aquela que deriva do próprio livro. É o que observou outro grande escritor latino-americano, Fuentes, em “O milagre de Machado de Assis”. O romance realista do século 19 retomou a tradição cervantina, que passou a existir ao lado de outra não menos importante, por ele denominada de Waterloo: “A tradição de Waterloo afirmam-se como realidade. A tradição de La Mancha sabe-se ficção e, mais ainda, celebra-se como ficção”.

A primeira deriva da situação social francesa pós-napoleônica, devendo-se a Balzac sua invenção. Balzac é tão comprometido com a objetividade em suas histórias que é perfeitamente possível estudar A comédia humana como um documento de inegável valor sociológico, escrito não obstante por um gênio literário e não por um cientista social. Já a segunda tradição, mais fluida, menos lógica e extravagante, descende de outros livros e é tributária do mestre espanhol. Tal como a outra vertente, ela pinta cenários e paisagens espantosamente reais, contudo no interesse de fazer representar o fantástico. Sirvam de exemplos a pobre região da Mancha, na Espanha, imortalizada na obra-prima do próprio Cervantes, ou mesmo (pela analogia apresentada) as cidades do Rio de Janeiro e de Buenos Aires.

Essa tradição influenciou algumas das mais importantes vozes da literatura mundial e latino-americana. De formação inglesa tanto quanto Machado, o escritor argentino Jorge Luis Borges foi um dos mais sutis expoentes do método cervantino. Peculiaríssimo, não criou um único personagem fundamental; antes, uma obra inteira cuja obsessão permanente é a citação livresca, similar ao encanto de Alonso Quijano pelos heróis de cavalaria. É digno de nota que a principal dessas obras chama-se, em oposição à realidade, Ficções. O crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal definiu o processo ficcional do argentino como “poética da leitura”. Borges, contudo, não foi o primeiro escritor continental a manifestar a influência de Cervantes. Segundo Fuentes, antecedeu-o, à altura, o brasileiro Machado de Assis, escritor de língua portuguesa e natural de um país cuja literatura não tem o prestígio da de seus vizinhos sul-americanos.

Além da qualidade, a língua tem sido um obstáculo permanente para a difusão da literatura nacional. Insulada por razões históricas, em torno dela assistimos um universo humano alheio à existência de inúmeros personagens fictícios que não ficam a dever ao gênio de qualquer outra latitude. Temos o privilégio dessa afirmação porque apenas nós podemos fazer um julgamento razoável: lemos com escandalosa familiaridade aqueles mesmos estrangeiros para os quais a existência da literatura brasileira é apenas uma possibilidade remota. Conhecemos nossos escritores tanto quanto os dos povos cuja arte nos serviu de modelo desde os primórdios de nossa própria tradição, iniciada no século 18 pelo Arcadismo, de acordo com Antonio Candido (Claudio e Gonzaga, os principais poetas do período, já manifestavam o sentimento nativo, de brasileiros).

Portugal dominou o mundo. Porém, à diferença do império espanhol, não ocupou tão vasta dimensão geográfica nem colonizou lugares que vieram a se tornar relativamente importantes, como a Argentina e o México. Conquistou algumas regiões da África, flageladas pela exploração colonial e economicamente insignificantes, e o Brasil, ainda no impasse entre ser uma grande nação ou continuar sendo apenas uma promessa, às vezes cansativa. A literatura produzida nesse gigante, entre indeciso e jerico, felizmente não resistiu ao magnetismo salutar de “Dom Quixote”. Tanto que o prestígio por ela alcançado salvou o gênero romanesco do esquecimento, no século 19, na América Latina, de acordo com Fuentes: “A América Espanhola ainda terá de esperar, assim como a Espanha esperará por Clarín e Galdós, por Borges e Asturias, Carpentier e Onetti. Em compensação — e esse é o milagre — o Brasil dá sua nacionalidade, sua imaginação, sua língua ao mais importante — para não dizer o único — romancista ibero-americano do século passado: Joaquim Maria Machado de Assis”.

O escritor mexicano recorda que muitas são, mundo afora, as derivações de “Dom Quixote”. Na França, pátria do realismo (posteriormente extremado pelo naturalismo de Zola), Dom teria inspirado Jacques, o Fatalista, e a ressentida Emma Bovary, personagens respectivamente criados por Diderot e Flaubert. O Cavaleiro da Triste Figura é, assim, o início dum corolário no qual Jorge Luis Borges inscreveu-se, ao seu modo: declarar que um homem é todos e repetir ao longo de sua produção literária que ele próprio é um impostor parecem-me posições típicas do gênero manchego. Além de desdobrar-se noutra personalidade, Alonso Quijano é um devorador de livros. Contra esta argumentação pode-se alegar, com razão, que Borges opera em sentido oposto a Cervantes: seu projeto literário consiste precisamente em aniquilar a individualidade com seu ceticismo perturbador, quando o Quixote a valoriza de forma cândida e patética.

Um dos relatos da Antologia pessoal de Borges chama-se “Tema do traidor e do herói”. Nele, creio eu, podemos flagrar a influência de Cervantes no autor portenho, uma vez que o método adotado é, conforme Monegal, o da leitura. O presente relato narra a história do conspirador irlandês Fergus Kilpatrick, repetindo o drama de Júlio César — importa esclarecer, dos dois Júlio Césares: o histórico e o fictício, de Shakespeare. Borges cria um investigador, chamado Ryan, que procura compreender a morte de Kilpatrick para fins biográficos. Para tanto, começa a juntar as peças do quebra-cabeça, e eis que lhe caem às mãos uma carta e um memorial ignorados, uma tradução, um artigo e uma sentença de morte. Estamos, assim, diante de elementos inequívocos da poética cervantina, porque todas as peças mencionadas são textos e deságuam na leitura. Ao fim e ao cabo, o conspirador irlandês é assassinado ardilosamente, confunde o seu destino com o de César — o drama tautológico — e sua vida se desenrola nuns quantos escritos pressagiosos. Kilpatrick se vê, essencialmente, envolto numa trama em que a realidade se mistura com a ficção e vice-versa. Bem ao modo, portanto, do esquema de Cervantes, onde Dom Quixote alterna a realidade com o delírio — e não seria esta uma boa palavra para designar ficção?

“Delírio” é o título sugestivo do Capítulo VII de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Compare-se esta obra ao capítulo XVIII, “Onde se contam as razões que passou Sancho Pança com o seu senhor Dom Quixote, com outras aventuras dignas de ser contadas”. Será possível que o capítulo machadiano tenha sido todo escrito sob a inspiração de Cervantes? É a hipótese a ser investigada. Alguém poderá provar a nulidade dessa conjectura, razão pela qual proponho a qualquer leitor interessado fazer a comparação e tirar suas próprias conclusões. A meu ver, o primeiro indício dessa proximidade é o título com que o autor brasileiro, a fim de não deixar dúvidas, define o seu capítulo: “Delírio”. Uma análise conjunta dos dois textos permite chegar a conclusões surpreendentes.

Na fantasia de Cervantes, Sancho e seu amo vão por um caminho a conversar, quando se deparam com “uma grande poeirada”. O escudeiro alerta o amo de que aquilo são “dois grandes rebanhos de ovelhas e carneiros”, mas Dom é acometido por um de seus transes e vê se aproximarem dois exércitos inimigos. A fim de reconhecer-lhes os cavaleiros principais, o amo convida Sancho a fazerem o seguinte: “retiremo-nos para aquela alturinha que ali se levanta, donde se devem descobrir os exércitos ambos”, compostos, por sua vez, de “infinitas nações”: númidas, partos, medos, citas, etíopes etc, etc. Inevitavelmente, o Cavaleiro da Triste Figura toma partido por um dos lados e se lança contra o outro. Este ato dramático tem consequências que deixo em suspenso, passando à síntese do capítulo machadiano, para fins de comparação.

Seguramente, na maior parte das “Memórias Póstumas…” não encontramos nenhuma pista que justifique o parentesco entre Dom e Brás Cubas. Apenas os primeiros capítulos permitem essa analogia, e correspondem ao momento em que a transmutação moral do personagem machadiano, já maduro, atinge um limite extremo. Neste caso, não caberia aqui nos valermos da tal “teoria das edições humanas”, lançada pelo próprio Machado? Com efeito, o Cubas sob nossas lentes é, por assim dizer, o da última edição. O solteirão e hipocondríaco Brás Cubas assumiu prontamente, no capítulo VII, a figura de um “barbeiro chinês” e, depois, da “Suma Teológica de Santo Tomás.” De chofre, um hipopótamo o arrebata e o conduz à origem dos séculos, aonde é colocado “ao alto de uma montanha”. E eis que, do alto desse monte, vê com olhos delirantes “as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas”. Em meio ao turbilhão, passam “os Hebreus do cativeiro” e os “devassos de Cômodo”.

Surpreendem-se, neste brevíssimo cotejo, as seguintes semelhanças entre os dois textos: a) ambos os personagens estão fora do seu juízo, b) alcançam um monte e, c) da mesma maneira, vislumbram um cortejo de civilizações antigas. As analogias vão além, podendo-se deduzir que o hipopótamo que transporta o enfermo Brás Cubas corresponde ao pangaré Rocinante, de Dom Quixote. Fantasiar outro cavalo seria óbvio, e um rinoceronte ou uma girafa daria no mesmo: o que os identifica é serem dois quadrúpedes, a pista que basta. A bizarrice de tratar-se dum hipopótamo parece constituir, até, uma exigência do gênero picaresco. Não se conclui apenas dessa correspondência que Brás Cubas seja um sucedâneo do Quixote. Na verdade, as diferenças entre eles são flagrantes, devendo-se reconhecer que o Cubas “das primeiras edições” está mais para o normalíssimo e pragmático Sancho Pança. E sequer é um leitor de livros, como “Madame Bovary” o é. Excluindo-se o transe momentâneo que o acomete, Cubas é bastante lúcido e realista, e inteligente sem ser desvairado.

Seguimos-lhe os passos e testemunhamos uma existência condizente com os padrões da burguesia brasileira do primeiro Império: forma-se em advocacia na requisitada faculdade de direito de Coimbra; retorna ao país e é induzido pelo pai, orgulhoso e indulgente, a seguir a carreira política. Só mais tarde é que começa a descer ladeira abaixo (que grande romance não é assim, quase uma receita de bolo!), a ponto de negar a posteridade a si mesmo, renunciando o expediente da procriação, na última e ácida sentença do livro. É o desenlace chocante mas coerente da “flor amarela e mórbida” da hipocondria, que o acomete após a morte da mãe, no capítulo 25, para nunca mais o deixar. Jamais tive, ou terei, paciência de ler mais que uma dezena de páginas de Paulo Coelho, mas é possível que o sucesso do mago se ampare numa perspectiva menos desencantada, que agrada o leitor ameno. Desencanto que, a bem da verdade, torna chatamente igual todo verdadeiro Dostoiévski.

No que respeita às consequências daquele ato de Dom Quixote, ao se lançar contra a carneirada (digo, contra um dos exércitos que acredita enxergar) e ser ferido gravemente nas costelas, dentes e queixais pelos pastores de ovelhas (isto é, pelos supostos inimigos), por um instante o pobre cavaleiro parece recobrar o seu juízo, após a censura de Sancho: “Não lhe pregava eu, Senhor Dom Quixote, que se tornasse atrás, e que os que ia acometer não eram exércitos, senão carneiradas?”

“Aí tens tu como aquele ladrão do sábio meu inimigo faz aparecer e desaparecer as coisas, disse Dom Quixote; — podes crer, Sancho, que aos tais é fácil figurarem-nos tudo que lhes lembra; e este maligno que me persegue, invejoso da glória que viu me adviria desta batalha, transformou os esquadrões dos inimigos em fatos de ovelhas.”

Machado de Assis constitui seu próprio “maligno” (ou necromante Fristão, entre outros nomes) na revoltante figura de Pandora. Em comum, tais entidades metafísicas têm o destino dos homens nas mãos, causando-lhes a angústia insanável: “Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação”.

“Não respondi —; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse   rosto indiferente, como o sepulcro.”

Os céticos da equivalência proposta poderiam se valer deste diálogo para rebatê-la. Todavia, se observarmos alguns capítulos imediatamente anteriores das “Memórias Póstumas…” — digo, o II, o III e o IV —, vamos descobrir algumas possíveis indiretas de Machado de Assis, preparando aquela identificação. A ideia do famoso emplasto tinha dois objetivos ou “faces”, segundo o próprio Brás, uma delas “sede de nomeada. Digamos: — amor da glória”. No capítulo seguinte, ao narrar sua genealogia, tece o seguinte comentário sobre o apelido “Cubas”: “o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou”, e, por fim, ao admitir que o tal emplasto é uma ideia fixa, fez questão de enfatizar que “tornando à ideia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doidos”. Assim se confessam, de saída: a) a luta subjacente contra o esquecimento, b) a inspiração cavaleiresca e, c) de quebra, a possibilidade de ser um alienado — tudo próprio de Dom Quixote, de quem, acredito, Brás Cubas seja uma versão literária mais moderna.

Trata-se dum Quixote bastante original, machadiano, nascido na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em 1805. Sua altercação no capítulo VII, acima transcrita, contrasta-o de forma original e magnânima com o resignado cavaleiro de Cervantes. Cubas, paradoxalmente, nos convence de sua lucidez naquela negativa — ao dizer que não quer compreender a Natureza —, e inicia o capítulo demonstrando ter consciência de sua enfermidade: “Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, a ciência mo agradecerá”. Este defunto contador de história prova que não possui a recalcitrância quixotesca, pois se opõe à destruição da vida pela força cega da natureza. Qual de nós não gostaria de ter a oportunidade oferecida por Machado de Assis a esse destemido paladino, que nos representa?

A natureza, na concepção pessimista do herói machadiano — marcado, ademais, pelas lembranças relativas aos seus dissabores amorosos com Marcela, carcomida pela bexiga, e Virgília —, condiciona nossas aspirações ao seu capricho final. Brás Cubas entra em delírio para alegorizar a criação e assim manifestar o descontentamento universal, falando em nome do gênero humano. Enquanto Dom arremete-se contra pessoas e objetos para combater o equivalente metafísico, Brás Cubas põe-se diretamente em contato com o elemento criador, ainda que com o único recurso de que dispõe e de efeito nulo: palavras. Desfaz-se de subterfúgios para afrontar o oponente, que o personagem cervantino transfigura em gigantes e moinhos de vento.

No capítulo VII de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” o escritor brasileiro reflete tanto a tradição, relendo o Quixote e dirigindo-se ao leitor, quanto a inquietação crucial da humanidade, através do diálogo com a narrativa de Cervantes. Brás Cubas e Dom Quixote pelejam inutilmente contra o inimigo comum deles e de cada homem: a morte, o fim, o esquecimento. Machado de Assis trabalha sobre uma “experiência alheia”, conforme as palavras de Infante, renomeando-a e modificando-a para assim acrescentar uma pedra a mais em uma das tradições de que é herdeiro: a de Miguel de Cervantes.