Suspense da Netflix, baseado em livro, fará 125 minutos parecerem o resto de sua vida David Bukach / Netflix

Suspense da Netflix, baseado em livro, fará 125 minutos parecerem o resto de sua vida

Filmes sobre temas brutais nem sempre são atrozes, e essa é outra razão para que despertem o interesse do espectador. Torna-se muito mais instigante acompanhar o crescimento de uma história do ponto de vista da total surpresa quanto ao que autor, diretor e elenco querem nos fazer imaginar do que se entregassem tudo de imediato, de bandeja, restando a nós apenas o espanto. As emoções mais primitivas ficam à flor da pele, e nos fazem reféns dos próximos desdobramentos da trama, que pode muito bem avançar por rumos insuspeitos, inventar sua própria lógica, brincar com as expectativas do público sem a menor cerimônia — e capturá-lo sem chance de defesa justamente por isso. As histórias verdadeiramente boas não se interessam por manifestar qualquer tipo de fidelidade, a quem quer que seja, o que não deixa de ser um perigo na medida em que, de tão surpreendentes, podem sair do eixo e não responder mais aos estímulos da audiência, que também se cansa de tantos melindres e arroubos de autossuficiência. As histórias verdadeiramente boas também enfrentam provações.

Jeremy Saulnier tem exatamente essa visão ao apresentar “Noite de Lobos” (2018), com que levar sua audiência a estabelecer vínculos com a trama que, conforme se vai ver, não se sustentam em pé. Destaque no TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá, em 13 de setembro de 2018, o filme do diretor é audacioso, talvez até mais que o recomendável, não obstante essa sua característica se alinhe mais à categoria de qualidade que de defeito, não propriamente por seus méritos, mas pela tibieza do que se viu à época. Saulnier é um artista sofisticado, que não se resigna a ser ludibriado por falsas impressões acerca do que contar, e por isso mesmo torna-se inflexível além do limite, como se a simples ameaça de repetir alguma coisa já feita soasse como ofensa pessoal (oxalá todos os realizadores de filmes pensassem assim!). No seu caso, é nítido o esforço em torcer a narrativa de um para o outro lado, o que, por si só, não se constitui equívoco. Os problemas começam no momento em que tanta disciplina passa a interferir no andamento natural do enredo, que não desaponta, mas sofre com reviravoltas meio bruscas demais.

O roteiro de Macon Blair, que também faz uma ponta afetiva em cena, a partir do romance homônimo de William Giraldi, finca a história em algum lugar do Alasca, e só a onipresença da neve, do céu pesado, cor de chumbo e a queda repentina da noite, densa, já colaboram muito para a sensação de gravidade de tudo quanto se passa ali. A ninguém ocorre de imediato que, embaixo de tanto gelo, possa existir uma cidade inteira, com problemas muito específicos. Episódios em que crianças simplesmente desaparecem, carregadas por lobos, são cada vez mais frequentes e, a princípio, não se consegue ter alguma medida do quão metafórico ou não é o argumento central do longa, até porque exatamente essa indefinição do espaço, que gradativamente expande-se também para o que concerne ao tempo, se apodera do cenário: o Alasca de Saulnier é particularmente tenebroso, inóspito, hostil. É aí que desponta a figura ambígua de Medora Sloane, a aldeã interpretada por Riley Keough. Medora está abandonada à própria sorte num rincão tomado por indígenas mais e mais ariscos, sem o marido, Vernon, de Alexander Skarsgård, e tendo de conviver com evidências quase inescapáveis de que o filho do casal foi devorado pelas feras que, por alguma justificativa, estão fora de controle. Seu último alento é contar com a ajuda de Russell Core, o especialista em animais selvagens vivido por um Jeffrey Wright em grande momento.

Saulnier aborda esses grandes conflitos (a guerra, o enfrentamento entre brancos e índios) de maneira superficial, mas com pulso firme, sem permitir que “Noite de Lobos” derive para a análise política em excesso, mas fazendo questão de esclarecer que nada do que vai ali é obra do acaso — e prova disso é o tempo que investe nas sequências em que se introduz a psique do personagem de Skarsgård, que volta inesperadamente e se depara com a loucura de Medora, a presença algo invasiva de Core e a ameaça crescente de Cheeon, o mestiço encarnado por Julian Black Antelope. O quarteto detém a chave do mistério da história, que abre mão de soluções fáceis, mas fica meio sufocada pela urgência do diretor em não deixar pontas soltas quando, nesse caso, algum caos faria bem em meio a tanta seriedade triste. 


Filme: Noite de Lobos
Direção: Jeremy Saulnier
Ano: 2018
Gêneros: Thriller/Aventura
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.