A ética de ‘La Casa de Papel’ e a perfeita definição de mocinho e bandido Divulgação / Netflix

A ética de ‘La Casa de Papel’ e a perfeita definição de mocinho e bandido

O cinema espanhol conseguiu realizar a série de streaming mais perfeita que existe, “La Casa de Papel” (2017). A perfeição a que me refiro não tem a ver com técnica (que interessa ao crítico de cinema), e sim com sagacidade. Criada pelo produtor e diretor Álex Pina, esse misto de suspense e drama — cuja linearidade é interrompida por flashbacks — é sobre um assalto na Casa da Moeda da Espanha por um grupo de oito criminosos mascarados de Salvador Dalí. Dalí, o próprio, ficaria lisonjeado com a citação, graças ao caráter subversivo que a trama adquire na medida em que cresce. A referência a Guy Fawkes — símbolo do grupo Anonymous — não é descartável. Uma voz narrativa, em off, pertencente à impulsiva e rebelde Silene Oliveira, codinome Tóquio (Úrsula Corberó), perpassa todos os capítulos. Mas o verdadeiro protagonista parece ser um estrategista genial: o Professor, brilhantemente interpretado por Álvaro Morte.

Até a segunda temporada somam-se 22 capítulos de aproximadamente uma hora cada. A ação dos “criminosos” dura 128 horas, ou cinco dias, e resulta no roubo de quase 1 bilhão de euros, especialmente fabricados por funcionários da Casa da Moeda. São os reféns do grupo. Não vamos aqui tratar muito de enredo, e sim especular sobre um ramo da filosofia problematizado por Álex Pina: a ética. A série é tão boa que não merece spoilers: cada leitor deste texto é convidado a assistir, e quem sabe concordar. Quando falamos de perfeição nos referimos à notável na capacidade de Álex Pina de permutar situações que se encaixam de modo tão coeso que praticamente não há fissuras, na trama preconcebida por seu gênio do crime. Meticuloso, o Professor antecipou o futuro.

“La Casa de Papel” é, sobretudo, um filme muito inteligente, sobre inteligência: a da polícia versus a de Sergio Marquina, identidade real do personagem. Tramas policiais são jogos entre gatos e ratos, mas aqui é mais que isso por causa daquela previsão assombrosa. É jogo de xadrez materializado numa situação concreta. De um lado o Professor, de outro principalmente Raquel Murillo (Itziar Ituño), a não menos sagaz inspetora da Polícia Nacional, na maior parte do tempo à frente das negociações com os sequestradores. Ela é um páreo duro para o Professor. Mas, quando achamos que é o fim da linha para os assaltantes, uma solução para eles aparece, de forma lógica e convincente. Marquina passou a vida estudando Direito e, em tese, todas as variáveis possíveis, a partir da previsão de cada reação policial sobre cada ação do grupo. Assim, poderia se antecipar e estar sempre uma jogada à frente de seus perseguidores. E quando algo desse errado — porque podia dar errado, e dá errado! —, ainda assim ele havia previsto uma solução possível. O Professor é um obcecado tímido, metódico e racional. E talvez por ser racional não contou com uma variável: a paixão, “único furo real de um plano perfeito”.

De todas as paixões (e há várias neste thriller), a mais determinante é talvez a das massas. Assim como em “O Gladiador” (2002), em que o ex-general Maximus Decimus Meridius precisa conquistar a escumalha para sobreviver — é a lógica da vida real — também em “La Casa de Papel” existe um circo: a Espanha inteira, para não dizer o mundo. A opinião pública é o mais importante — e ela está sempre do lado mais fraco: a maioria dos estrangeiros torceriam por Camarões versus o Brasil, não é? É assim que o lado mais fraco reequilibra o jogo e eventualmente o mais fraco torna-se o mais forte. Mas é preciso oferecer bons argumentos à massa. Além de ser exímio na espada, o herói de Ridley Scott surpreende quando desobedece as ordens do arquirrival Cômodo para eliminar o vencido Tigris de Gália. Torna-se “Maximus, o piedoso”. Em “La Casa de Papel” também há um excelente argumento, além do de evitar assassinatos. E aqui começa a ética.

A justificativa para o assalto da Casa da Moeda da Espanha tem a ver com a história familiar de Sergio Marquina, o Professor. Mas esta é uma justificativa estritamente privada, que confere consistência psicológica ao personagem de Álvaro Morte. E, como foi sugerido, não estamos aqui discutindo psicologia. Mais poderoso do que a história íntima, e de apelo universal, é o argumento de que Marquina se vale no penúltimo capítulo da segunda temporada: a ele e seus oito amigos parece justo enfrentar o Estado e correr um sério risco para roubar um bilhão de euros, tendo em vista a grande mentira que é o sistema. Segundo o Professor, em face da crise financeira de 2008 o Banco Central Europeu imprimiu, “do nada”; 171 bilhões de euros em 2011; 185 bilhões em 2012, e 145 em 2013, num total de 501 bilhões. O objetivo confesso das autoridades era garantir a “liquidez” do mercado e salvar os bancos (isto é, os ricos e os super-ricos) da bancarrota. “Alguém disse”, pergunta o professor, “que o Banco Central é ladrão?” Não, ninguém. Concluímos, por nossa própria conta, que nem mesmo a imprensa, que diz trabalhar pela verdade e a transparência, questionou. Antes, a imprensa endossou.

Aliás, a imprensa não mente, mas omite. Ela ignora ou edita para contar apenas o que interessa aos donos dos meios de comunicação, da forma que convém aos seus anunciantes: o mercado e os governos. Também é parte do sistema. Daí para chegar à conclusão de que a democracia é o regime no qual o gado decide o capim que vai comer, é um passo. Condicionada, a massa é incapaz de reagir. Mas Sergio reage, decidido a “injetar liquidez no mundo real em um bando de desgraçados para escapar de tudo isso”. Assim nasce a Resistência, por “indignação e ceticismo”. “Bela Ciao”, canção da resistência italiana contra as milícias fascistas de Benito Mussolini, foi escolhida para ser a canção de Sergio Marquina e seu Comandante-Chefe, Berlim, codinome do narcísico Andrés de Folonossa, interpretado por Pedro Alonso. O totalitarismo, mascarado de democracia, é uma realidade.

Segundo a ética humana de Sergio Marquina, o maior de todos os roubos teve caráter oficial e foi promovido pelas autoridades públicas com a anuência das leis, do judiciário e da polícia. Tudo se reduz a reconhecer, então, se a acusação é verdadeira ou mentirosa. Porque, se é verdadeira — o que é um “assalto”? E, se não é mentirosa, qual crime é mais importante e danoso? É absurdo como um quadro de Dalí essas mesmas autoridades tratarem os mascarados como criminosos. Absurdo persegui-los com a faca nos dentes devido a um assalto infinitamente menor, porque garantem os assaltos infinitamente maiores do sistema. Por um momento de transe o expectador tem a clarividência de enxergar o mundo pelo avesso, em toda sua podridão e injustiça. “La Casa de Papel” tem uma moral fascinante sobre a distribuição da riqueza, advertindo-nos para quem de fato são os mocinhos e quem os bandidos, neste mundo onde os valores são completamente invertidos.

É uma pena que continuemos conformados, porque sim: nós sabemos quem são os ladrões.