Muitas vezes tudo de que se precisa é largar tudo, abandonar a vida que se leva, refazer os cálculos rumo a uma nova trajetória e procurar no mais fundo, no mais obscuro do espírito a chave quase mágica que abre portais deste e de qualquer outro mundo, do presente para o futuro, fazendo escalas no passado, se necessário, com o firme propósito de encontrar a razão pela qual viemos nos aprisionando há tanto tempo para que a partir desse gesto estejamos verdadeiramente transformados por nossas intenções e possamos, afinal, mudar. A estrada para a perdição é larga, porém sombria; uma vez que o homem envereda por essa senda tenebrosa da existência, surgem mil outros desvios que, por mais retos que possam se mostrar, conduzem-no à desventura e esse descaminho não dá noutro lugar senão na morte. Insucessos nem sempre são ruins, e até pode ser desejáveis, desde que admitamos que fracassar é só um jeito torto de absorver novas possibilidades. Todo mundo se depara com percalços ao longo da vida, mas enfrentá-los não é para qualquer um. Os instantes muito particulares de dor, de angústia, de solidão de cada homem sobre a face da Terra fazem-no mais dono de si mesmo, mais conhecedor de sua própria alma e da força invencível que há nela.
Numa fazenda arruinada no sul da França, uma mãe solteira sustenta seus dois filhos criando gafanhotos como fonte de proteína a fim de tentar fugir da bancarrota. Fortuitamente, ela descobre uma maneira para fazer sua produção aumentar e a partir daí, o francês Just Philippot elabora o argumento assombrosamente inventivo de “A Nuvem” (2020), nadando contra a corrente e projetando o cinema de seu país — pródigo em comédias românticas refinadas, dramas com sátiras de cunho sociológico que iluminam as trevas em que a humanidade se mete de tempos em tempos e um ou outro suspense que exige do espectador atenção redobrada — para além do óbvio, sem abdicar daquela sofisticação mesma que se entende o DNA de toda manifestação artística da França, desde o Renascimento, nos estertores do século 15. Philippot não se rende à patrulha e compõe um excelente trabalho, rico em elucubrações acerca do que vem a ser uma família.
É possível que a conjuntura proposta pelo diretor seja uma realidade não muito distante, uma vez que os recursos naturais para se produzir alimentos demandam grandes áreas e quantidades de água quase abusivas, mesmo na pecuária intensiva. Virginie, a empreendedora corajosa — e algo amargurada — vivida por Suliane Brahim, aposta nesse esgotamento da natureza (e de si mesma) quando envereda pela criação de gafanhotos para fins culinários, embora boa parte desse contigente serve mesmo é para ração para répteis e alguns outros mamíferos, como frisa o roteiro de Franck Victor e Jérôme Genevray. Não importa: se a vizinhança não está preparada para renunciar a um bom bife, ela se submete a esse desvirtuamento de seu ideal desde que consiga manter os filhos, Gaston, interpretado por Raphael Romand, e Laura, de Marie Narbonne. Virginie conta apenas consigo mesma para a tarefa e não reclama, até que as vendas despencam a índices preocupantes. É o momento de Philippot recorrer ao plot twist vislumbrado por Victor e Genevray e sugerir que sua anti-heroína dá mesmo o sangue pelos seus, até o desfecho apocalíptico.
Filme: A Nuvem
Direção: Just Philippot
Ano: 2020
Gêneros: Terror/Drama
Nota: 8/10