O filme ignorado da Netflix que é uma das joias do catálogo (mas você não assistiu) Divulgação / Netflix

O filme ignorado da Netflix que é uma das joias do catálogo (mas você não assistiu)

Personagens contraditórios crescem na preferência do espectador justamente porque sublimam a necessidade de agradar e cumprem seu papel na trama em que estão inseridos: perturbam o estabelecido, dizem as verdades que todos veem, mas que restam escondidas no dia a dia, pensam pela própria cabeça, se arriscam. Mimetizando o ambiente de incontestável deterioração em que vivem, esses indivíduos deixam claro a todo instante que não tem o menor interesse quanto a posar de heróis, uma vez que a vida dos heróis costuma ser bem sem graça. Muito melhor vive — todos concordam — quem consegue, não sem algum escândalo, passar por cima do politicamente correto e viver a sua maneira, encampando as ideias que julga destacadas do senso comum e que podem fazer toda a diferença. Autenticidade é um valor cada vez mais raro nos tipos humanos que cruzam nosso caminho e também nós acabamos por absorver o receio do julgamento pelos motivos mais errados, quais sejam, posicionar-se frente às grandes questões da vida em sociedade, a começar pelas que dizem respeito à família. 

O argumento central de “O Mistério de Block Island” (2020) se destaca pelas subtramas cujos arcos parecem nunca se fechar, mas se amontoar sobre si mesmos, como uma planta capaz de extrair da terra nutrientes além do que verdadeiramente necessita para crescer. Os diretores, os irmãos Kevin e Matthew McManus, lançam mão do estratagema a fim de manter o público num raciocínio caótico permanente, o enredando numa história que vai e vem entre diferentes núcleos. Logo nas primeiras cenas, Harry, o personagem central vivido por Chris Sheffield, é atormentado pelas teorias conspiratórias de Dale, o amigo interpretado por Jim Cummings, e se revela uma voz sensata em meio à loucura que domina o roteiro dos McManus. A despeito do quão ponderado venha a ser, a sobrinha Emily, de Matilda Lawler, refere-se a ele em termos nada lisonjeiros, opinião com que sua mãe, Jen, personagem de Heidi Niedermeyer, concorda. À medida que a história avança, Sheffield imprime ao protagonista o ar desvairado que passa a caracterizá-lo, momento em que começa a sofrer de alucinações pontuais. Os diretores elaboram a dialética por trás de Harry mencionando sua intenção de assistir o pai doente, ao passo que também vem à baila a suspeita de que a possível herança é seu verdadeiro incentivo. Fragmentado, em busca de uma identidade que faça dele um sujeito comum — e de preferência afável —, ele percebe ao longe as situações conflituosas do enredo, que em geral espraiam-se sobre formas diversas de abuso. Essas simbologias são, em larga medida, apenas uma isca para capturar o interesse de quem assiste, e restam inacabadas.

As hecatombes que permeiam o mote principal do filme definem o segredo do título, uma social e a outra, intima. Esta se relaciona à loucura progressiva do pai de Harry, à primeira análise apenas um sonâmbulo, mas vítima de distúrbios que inspiram muito mais preocupação, enquanto aquela fala ao descaso com a pauta ambiental. As águas da região aparecem tomadas por peixes mortos, os pássaros são acometidos de uma anomalia neurológica que os leva a se chocar contra o solo e os gatos domésticos ficam mortalmente suscetíveis a parasitas. Depois que a praga já está amplamente instalada, a comunidade se mobiliza e cobra providências das autoridades, ineptas quanto a descobrir o que desencadeara o surto. Do ponto de vista narrativo, toda essa destruição está visceralmente ligada ao desalento de Harry, e sua perspectiva depressiva frente ao mundo que o cerca, catastrofista mesmo, aponta para o desmoronamento literal de todas as estruturas, corpóreas e metafísicas, quando se atinge o clímax eminentemente distópico do que é descrito. Renuncia-se à alusão a feiticeiras, zumbis e monstros que tais e centra-se força no terror psicológico implícito no sonambulismo, na amnésia, nos episódios de relatos delirantes, na desintegração das faculdades mentais, a exemplo do que se vê na sequência final, resumo do que os McManus pretenderam dizer ao longo de 97 minutos.


Filme: O Mistério de Block Island
Direção: Kevin e Matthew McManus
Ano: 2020
Gêneros: Terror/Ficção científica
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.