Impressionante, doce e emocional, o filme da Netflix que pode mudar a sua vida Divulgação / Netflix

Impressionante, doce e emocional, o filme da Netflix que pode mudar a sua vida

Uma heroína de 23 verdes anos, vítima de uma superproteção materna quase criminosa, mas que não a impede de perseguir o sonho da verdadeira liberdade, da mesma forma que a submissão a um limite físico, amenizado pela cadeira de rodas que conduz com destreza invejável desde pequena, só faz crescer sua ânsia de uma vida cada vez mais plena. É esse o sentimento que aflora quando se conhece a história de uma pessoa, por baixo da qual pulsa uma alma, que não permite que lhe sintam pena, não por não ser exatamente igual aos outros, pelo menos. Em ignorando-se as exigências de seu estado, sem dúvida um fator que complica determinadas interações, essa garota e todos os portadores de deficiências físicas e intelectuais são mulheres e homens que tem desejos, os que podem realizar e os recalcados, em face de sua condição ou a despeito dela; necessidades, as especiais, que as deslocam para um pouco mais longe do contingente hegemônico, e todas as demais, que as aproximam e as igualam; e a eterna busca por fazer de sua jornada existencial um aprendizado que as capacite a se lançar a empreitadas mais destemidas, a voos mais altos, ambição de toda a humanidade.

Yuma Takada, essa heroína, protagoniza “37 Seconds” (2019), estreia da diretora japonesa Hikari em longas-metragens. História que despreza a abordagem convencional sobre o tema da inclusão do portador de necessidades especiais para além do mercado de trabalho, o roteiro de Hikari se molda pela transcendência da formalidade de levantar o argumento, óbvio, de se garantir ao deficiente a chance de ganhar a vida com dignidade, prerrogativa que consta da Carta Magna de qualquer democracia que se preze e remete à Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, na esteira do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Foi a partir de então que esses indivíduos se foram tornando efetivamente visíveis às sociedades ao redor do mundo, uma vez que o desfecho da guerra implicou em milhões de amputados e cadeirantes. Hoje, os deficientes somam mais de um bilhão de pessoas em todo o planeta, um número expressivo, impossível de se desconsiderar, mas que ainda não tem o condão de clamar à consciência de cidadãos e governos. Yuma, personificada pela sensibilidade de Mei Kayama, passa a conviver com a paralisia cerebral como se fosse a coisa mais natural do mundo — e para ela é mesmo.

Vítima de hipóxia neonatal, uma queda brusca e irreversível dos níveis de oxigenação do sangue ao nascer, Yuma ficou sem ar por 37 segundos assim que viu a luz do mundo, tempo bastante para comprometer os movimentos dos membros inferiores e do braço esquerdo para sempre e obrigá-la a usar a cadeira de rodas para se deslocar. O texto de Hikari dota sua protagonista de um estoicismo meio farsesco, que sugere que ela não se importa em ter de renunciar a atividades básicas de qualquer pessoa, como tomar banho e ler sozinha, porque se não tivesse sido ela, poderia ter acontecido com alguém mais fraco, que decerto sucumbiria à provação. Kayama, por seu turno, confere à personagem a aura de desafetação que a faz tão verossímil; presa em suas próprias aspirações em inúmeras circunstâncias, Yuma desenvolve uma aptidão rara para a produção de mangás, os quadrinhos japoneses. A vontade de vivenciar a sexualidade em plenitude também passa a ser uma questão, malgrado a onipresença da mãe, Kyoko, de Kanno Misuzu, se incline a obnubilar seus planos, o que, claro, não permite. Nesse ponto, entra em cena Toshiya, o guardião de sua libido, delicadamente elaborado por Shunsuke Daitō.

Hikari deslinda a eminente ascensão profissional de Yuma a partir do espírito aguerrido da personagem, que não se dobra ao primeiro obstáculo. Aqui, o filme sofre sua grande reviravolta. Ao ser preterida na entrevista de emprego em que apresenta desenhos que retratam personagens em contexto sensual, a garota percebe que é hora, afinal, de virar mulher. O inusitado da cena é absorvido por Kayama à perfeição, o que torna possível que a trama siga até a conclusão auspiciosa. 

A doçura de Kayama, cadeirante na vida real, se contrapõe à tristeza atávica da personagem de Misuzu, que a disfarça e mesmo a justifica no cuidado paranoico para com a filha. Cada qual envolta num casulo que as aparta do resto do mundo — físico o de Yuma, enquanto a prisão de Kyoko é ainda mais limitante e mais perversa —, a diferença entre as duas é que a primeira não se conforma e, ao que tudo indica, há de se libertar. Quanto à segunda, não existe salvação para quem se molda ao tamanho de seu cárcere.


Filme: 37 Segundos
Direção: Hikari
Ano: 2019
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.