O filme da Netflix que fará chorar mesmo aqueles que têm coração de ferro Vision Distribution / Netflix

O filme da Netflix que fará chorar mesmo aqueles que têm coração de ferro

Nunca se sabe quando se dará o último adeus — ou melhor, quase nunca. O espírito pode até estar pronto, mas a carne não lida tão bem com a ideia de ter de se sujeitar ao martírio de uma doença que se espalha sorrateira, consumindo tudo, espírito inclusive, até que advenha a morte, indesejada das gentes por excelência, exceto quando o sofrimento é muito mais forte que a dor de uma partida súbita e definitiva. Essa tolerância para com a morte, temida como tudo o que o homem não conhece, é um bom caminho para entender e mesmo aceitar os desígnios da vida, a verdadeira soberana em tudo isso; a morte o que faz é se prestar à condição de instrumento mais óbvio e mais extremo para que a vida renasça. Cabe ao homem compreender, por mais difícil que pareça, que também ele deve se submeter ao tempo, o responsável por delimitar fisicamente os domínios de que morte e vida dispõem. Uma jamais invade o terreno da outra, por mais duro que seja admiti-lo. Tudo tem seu tempo sob o sol, e do mesmo modo para o homem, parte infinitesimal na composição do universo, vasto, inalcançável, misterioso em seu caos.

O diretor italiano Francesco Amato realiza com “18 Presentes” (2020) uma boa tentativa de sublimar a ideia, austera, mas impossível de ser combatida, do fim da existência. Para tanto, se vale da história verídica de uma mãe que maquina um jeito de permanecer unida à filha depois da separação inexorável que a morte lhes impõe, ainda que o sentimento de agonia pela perda nunca vá arrefecer de todo. Amato pesa a mão no melodrama em algumas passagens, mas seu filme transcende em muito o mero enredo da família ainda por se estabelecer e já abatida pelo luto precoce. A compreensão do diretor acerca do que vem a ser viver e morrer, de como um verbo só pode ser conjugado com a interposição do outro, da maneira que vida e morte escolhem para se darem por conhecidas, alude sem rodeios à noção de agradecimento, e não sem motivo   surge a figura dos presentes, aproveitada do caso em que o longa se baseia — poder-se-ia, esticando-se um tanto a corda, questionar por que alguém precisa recorrer a objetos materiais e, portanto, descartáveis, para não ser esquecido depois de morto, mas não é prudente. Do que se está a falar aqui é de metáforas, sutis ou nem tanto, da relação entre a continuidade da vida, para quem fica, e seu desfecho, para aqueles que se vão.

Aos quarenta anos, Elisa Girotto consegue, enfim, desfrutar do bom padrão que seu sucesso profissional lhe permitiu alcançar. À frente de uma agência de empregos, a personagem de Vittoria Puccini também se esmera na gestão da boa casa que pôde comprar no subúrbio de Roma, vive um romance tranquilo com Alessio, de Edoardo Leo, e não tem nenhuma grande aflição, ou seja, a vida lhe sorriu. Elisa e Alessio esperam uma filha e a gravidez segue em paz, até que ela percebe um corrimento enquanto atende um candidato. Vai ao médico, faz uma ultrassonografia e fica sabendo que não há nada com o bebê. Antes que possa comemorar, recebe a notícia a partir da qual sua rotina vai ter de ser moldada. Junto ao feto, cresce nela um tumor maligno que não pode ser operado e existe o risco palpável de morte — isto é, pode não viver o bastante para não acompanhar o crescimento da filha. Para que não pairem dúvidas de que Anna foi amada por ela desde sempre e a despeito da doença, Elisa instrui Alessio a dar à garota os dezoito presentes do título, um por aniversário, até que atinja a maioridade e seja, em teoria, capaz de refletir sobre as intenções da mãe.

Assumida por Benedetta Porcaroli, a personagem demonstra que ainda terá de amadurecer muito até que entenda o gesto de Elisa, por quem nutre uma espécie de mágoa, como se, inconscientemente, culpasse a mãe por ter morrido e ficado com um pai a que quem devota um desprezo também injusto. O roteiro de Alessio Vicenzotto — o marido da verdadeira Elisa —, coescrito com Amato e mais dois autores, Massimo Gaudioso, Davide Lantieri, se estende sobre a revolta natural de Anna, até que um recurso contrário ao fluxo cronológico da narrativa a apazigua, atmosfera que perdura até a conclusão do filme, que guarda pouco espaço para elucubrações quanto à maneira como Anna poderia ter reagido se não tivesse ganhado da mãe os tais presentes, ou mesmo se também tivesse morrido. Adolescentes são todos irracionais mesmo, eis o único argumento que torna seu egoísmo menos desumano.


Filme: 18 Presentes
Direção: Francesco Amato
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.