Ficção científica filosófica, inteligente e carregada de suspense é um dos melhores filmes do acervo da Netflix Divulgação / Warner Bros

Ficção científica filosófica, inteligente e carregada de suspense é um dos melhores filmes do acervo da Netflix

Há infinitas possibilidades quanto a se compreender a passagem do tempo. Para uns, o avançar dos anos é encarado sob a luz do desafio. Encerrar ciclos, virtuosos ou nem tanto, vibrar com progressos na vida profissional, constituir uma família que dá o imprescindível apoio em circunstâncias particularmente infelizes, poder contar com amigos leais, aqueles que entendem, se compadecem e não sossegam enquanto não veem resolvido o problema de alguém de quem se gosta como a um irmão (às vezes mais) é uma das melhores formas de se despender a vida, bem como há quem não valorize nada disso, ou por não gozar de nenhuma dessas condições, ou por se julgar capaz de encontrar fecho para casos intrincados demais. Contudo, uma terceira conjectura talvez seja a que gera mais calor. Uma categoria especial de homens invulgares transita pela vida e pelo tempo sem cerimônia, salvando a humanidade de destinos satânicos. Esses heróis garantem ao gênero humano perpetuar-se no planeta, destruindo tudo a sua volta, embora também protagonize um ou outro lampejo de iluminação.

Tom Cruise encara à perfeição esses tipos messiânicos, que salvam a humanidade de si mesma movido por princípios — e motivações outras que nunca restam suficientemente claras. Em No Limite do Amanhã” (2014), Doug Liman usa o argumento de transmigração no tempo a fim de jogar luz sobre as aspirações se um indivíduo, os possíveis desdobramentos deles para todo o mundo, e, por fim, mas ainda muito importante, a autodeterminação principalmente diante. A invasão alienígena de que Liman dispõe em seu filme reforça a intenção de fazer sobressair o caráter humano, demasiado humano do protagonista. O tenente-coronel Wlliam Cage, o mocinho de Cruise, muito mais que apreciar seu ofício, vive para ele. Responsável pela comunicação das Forças Armadas americanas, Cage deixa o trabalho de gabinete e vai para a frente de batalha no último dia de uma guerra interplanetária contra os munics, monstros parecidos com polvos que, sem figura de linguagem, arrastam seus tentáculos sobre a Terra. Sem que se conheça o real motivo — um dos mistérios que o diretor se esmera por ocultar do espectador — Cage é confrontado ad aeternum com fatos de sua história, sem que ao menos possa arriscar uma explicação. Os dias se sucedem rigorosamente iguais e receando que lhe sobrevenha o pior, Cage se adianta aos acontecimentos. Valendo-se da ajuda de Rita Vrataski, a corajosa guerreira de Emily Blunt, ele tenta, com seus poderes limitados, controlar a fúria dos intrusos, que nem Cage, nem Vrataski e muito menos o público sabem o quão perversos estão dispostos a ser. A humanidade para essas criaturas não passa de uma das etapas do processo de subjugação, a mais simples delas. Seres humanos são tratados como inimigos, por óbvio, mas há aí um componente de sadismo. Os mimics se divertem com a maneira pela qual passam a exercer domínio sobre todo o globo. Tomam o homem como cobaias, observam seu comportamento, suas reações diante de estímulos de perigo, e a partir desses dados, concebem estratégias a fim de aniquilá-lo. O mundo de “No Limite do Amanhã” é um imenso campo de guerra, com cadáveres insepultos e cidades inteiras em ruínas.

O mote usado por Liman, a partir do texto de um quinteto de roteiristas encabeçado por Christopher McQuarrie, diretor de “Missão: Impossível — Efeito Fallout” (2018), qual seja, situar o herói de “No Limite do Amanhã” entre dois mundos e duas eras, alimenta a natureza caótica do enredo, crível apenas graças à performance endiabrada de Cruise. Esse guerreiro de dois tempos, qual o célebre caçador de androides de “Blade Runner” (1982), de Ridley Scott, redivivo em 2017 pelas mãos de Denis Villeneuve, sabe que tem uma tarefa hercúlea pela frente, mas ainda que nunca deixe transparecer, está desolado. É dessa complexidade dramatúrgica que seu intérprete parte a fim de fazer o filme a crônica distópica que a trama pretende ser. E mais uma vez, ele conclui sua missão.


Filme: No Limite do Amanhã
Direção: Doug Liman
Ano: 2014
Gêneros: Ficção científica/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.