Amado pelo público e considerado um marco do cinema moderno, romance psicológico encantador volta à Netflix Divulgação / Focus Features

Amado pelo público e considerado um marco do cinema moderno, romance psicológico encantador volta à Netflix

Deve haver algum lugar onde repousam os amores atrofiados, fracassados, mortos. Sentimento talvez o mais controverso a pautar a vida, o amor, em muitas vezes, arrasta uma avalanche de outras emoções, completamente desconexas entre si. Duas pessoas que se amam podem despender um tempo deveras precioso com discussões em que cada qual defende um ponto de vista, como se o amor fosse um campeonato de falsas certezas, a que os amantes se dedicam pensando estarem, um e outro, dotados de uma razão insustentável em essência. Ao contrário, quando uma relação amorosa se finda, extingue-se junto qualquer indício de razoabilidade, a prova cabal de que o amor para existir se basta. E quando é verdadeiro, até pode acabar, uma vez que a vida mesma acaba, mas relega aos dois as recordações, boas e nem tanto. E, ainda assim, há quem queira se desfazer delas, como se amar fosse uma distração, que só teria sentido se leve e divertida. Isso é coisa de gente imatura, que não só não tem a menor ideia do que seja amor, como não o merece.

Levando ao extremo a premissa de um amor infeliz que se mostra especialmente danoso para um dos parceiros, “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, é uma das produções mais felizes em retratar as complexidades de uma relação que se pensava amorosa. Lançado em 2004, ainda hoje, dezoito anos depois, o filme do cineasta francês Michel Gondry ainda pode se considerar sucesso de público e crítica, que, a exemplo do que sucede quando têm outra vez diante dos olhos um trabalho genuinamente artístico e com margem para abordagens filosóficas, sempre encontram novos aspectos a considerar. Escrito por Charlie Kaufman, paradigma de bons textos para cinema ao longo da primeira década do século 21, “Brilho Eterno” tem muito de “Quero Ser John Malkovich” (1999), de Spike Jonze, no que diz respeito a entrar, sem a menor cerimônia, nos pensamentos de outrem, mas vai ainda mais longe no argumento da fantasia, sem a necessidade de ancorar tudo o que é levado à tela na letra fria da ciência, ao passo que prima por não deixar completamente soltas, inexplicáveis as passagens em que sobressai a constituição farsesca da história.

Sujeito formal e algo melancólico, Joel Barish toma um trem aleatoriamente e se depara com Clementine, que se aproxima dele sob aquela velha estratégia do “Já não nos conhecemos de algum lugar?”. Ele, por óbvio, vislumbra as intenções nada ingênuas da moça, que insiste no flerte e o acaba levando para a cama. A personagem de Kate Winslet não estava apenas exercendo seu potencial de sedução; Clementine e Joel — o tipo atormentado a que Jim Carrey dá vida em mais uma interpretação subestimada pela crítica por, decerto, escapar ao previsível — já foram namorados, mas a relação soçobrou e tudo o que poderiam ter guardado um do outro (os fins de semana debaixo das cobertas, as férias na praia, as juras de amor diante do testemunho das estrelas, bem como os estranhamentos quanto a detalhes menores sobre assuntos os mais bestamente irrelevantes, o ciúme, a suposta indiferença), parece relegado ao esquecimento definitivo. Suas memórias foram apagadas graças a um experimento inovador, que teria o condão de libertar os ex-namorados do sofrimento atroz e infrutífero de constatar o fim do amor.

Gondry frisa o leitmotiv de seu longa apontando uma das possíveis justificativas para a condução do enredo à luz de um melodrama, ainda que enxuto. Stan e Mary, os técnicos responsáveis pelo procedimento a que Joel e Clementine haviam se submetido, parecem ser os únicos a se satisfazer com os efeitos práticos da técnica, funestamente bem-sucedida, até que o plot twist, objetivo, mas elaborado sem artificialismo e nada simplório, se impõe sobre a narrativa. Agora, cabe ao sinistro Dr. Mierzwiak, de Tom Wilkinson, tomar as providências que julga prementes a fim de não deixar sua pesquisa a ver navios.

Propositalmente confuso quanto a cronologia e cenários, a trama prioriza reportar o que se passa na cabeça de Joel, o centro narrativo mais importante do filme. Imagens desconexas se devem à grande confusão mental do personagem, que se perde em suas próprias vontades, sem abrir mão de uma vida que não é mais sua. Diabolicamente inventivos, Kaufman e Gondry levantam suas próprias teses sobre a tal liquidez do amor contemporâneo, sem deixar o que interessa para escanteio. O amor só se mantém se alimentado pelas lembranças.


Filme: Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
Direção: Michel Gondry
Ano: 2004
Gêneros: Ficção científica/Romance
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.