Um dos mais belos e impressionantes filmes da história recente do cinema está no catálogo da Netflix Divulgação / Studiocanal GmbH

Um dos mais belos e impressionantes filmes da história recente do cinema está no catálogo da Netflix

O dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) podia até ter alguma razão quando apontou a suposta infelicidade de nações que precisam de heróis, mas no que diz respeito à humanidade e às pessoas de carne e ossos que a compõem, ai de nós, simples mortais, almas compressas, sem aqueles que dão a vida pelos outros, em nome de uma causa em que creem ou, como diria o poeta Dylan Thomas (1914-1953) em “Se em Meu Oficio ou Arte Severa”, apenas pelo simples salário pago pelo secreto coração deles, afinal os heróis da vida real precisam comer, ficam doentes de quando em quando, têm hipotecas a quitar. Em muitos casos, essas pessoas se revestem de uma valentia inimaginável para gente comum, deixam seus lares, suas famílias, seus filhos, e às vezes não voltam. Seus esforços são reconhecidos em cerimônias públicas, eles se tornam nomes de rua no subúrbio das megalópoles mundo afora, alguém lhes derrama uma lágrima furtiva, mas eles não voltam. É necessário dispor de outros heróis; estes recomeçam o ciclo iniciado pelos que vieram antes, desbravam novas sendas, e aquele mesmo destino os espreita.

Os filmes de catástrofes lucraram muito com o lançamento de “Homens de Coragem”, em 2017, quatro anos depois da tragédia que retrata. Esse subgênero, controverso por natureza, encerra prolíficas discussões acerca de ética, senso de humanidade, o surrado amor ao próximo, esse, sim, genuíno, num mundo tomado de um pragmatismo indiferente, irresponsável e assassino. Mas que vantagem haveria em ganhar o mundo e perder sua alma, como pergunta o apóstolo Marcos em seu Evangelho? Certos estão os que nadam contra a corrente a fim de resgatar uma criança que se afoga ou os bravos que, ao contrário dos que, ao avistarem um paredão de fogo, correm não na direção contrária, a fim de se salvar — por pragmatismo, covardia ou só por um rasteiro instinto de sobrevivência mesmo —, mas para dentro da selva em chamas. O diretor Joseph Kosinski expressa total domínio não só de sua história, como também dos recursos tecnológicos empregados em boa parte das cenas do longa, tornadas assombrosamente verossímeis graças ao denodo da fotografia do chileno Claudio Miranda.

“Homens de Coragem” se debruça sobre o cotidiano de uma equipe de bombeiros do Arizona empenhada em conquistar o certificado de hotshots, profissionais habilitados a combater incêndios in loco, valendo-se apenas dos aceiros, técnica que consiste em definir uma linha de fogo milimetricamente calculada. Enquanto não chegam lá e se tornam o primeiro esquadrão municipal de elite dos Estados Unidos, a equipe, baseada em Prescott, no centro-oeste do Arizona, e cujo líder, o chefe Eric Marsh, de Josh Brolin, se conforma em acompanhar de muito perto o trabalho árduo dos batalhões já aprovados, que se embrenha na mata com noções mais precisas sobre onde estão pisando e, por conseguinte, sabendo que procedimentos adotar a fim de prevenir um revertério se o fogo virar sem prévio aviso. O veterano Duane Steinbrink, participação afetiva de Jeff Bridges, é o padrinho da turma e o responsável por fornecer aos homens de Marsh todas as orientações que conseguir a fim de aperfeiçoar a performance do grupamento, ao passo que intercede junto ao avaliador Hayes, personagem de Ralph Alderman.

A valorização do argumento do companheirismo, uma constante no roteiro de Eric Warren Singer e Ken Nolan, sobressai com ainda mais força com a entrada em cena de Brendan McDonough, vítima dos altos e baixos tão próprios na rotina de um viciado em drogas. Ao saber que será pai, alguma coisa em McDonough subitamente se acende e ele decide mudar de vida. A interpretação de Miles Teller — impressionantemente exata em realçar a emoção sempre que necessário, mas primando mesmo pelo caráter de fera ferida do personagem — confere ainda mais sentido a uma narrativa cíclica, em que os bombeiros são submetidos a constantes situações de estresse, com as quais pensam que lidam razoavelmente bem desanuviando o ambiente mediante a verborragia tão característica que se lança das bocas uma vez que muitos homens se reúnem. É justo McDonough, o mais frágil deles, quem resiste ao golpe mais severo que os poderia colher, precisamente no primeiro grande desafio do pelotão depois de devidamente registrado como de autênticos hotshots.

Como sói acontecer quando tudo se encaminha excepcionalmente bem, mormente em histórias com esse contexto, é chegado o instante em que o espectador começa a acatar seus instintos e se questiona quanto à hecatombe que se anuncia. Conhecia por alto a desdita dos bombeiros de Prescott e custei a acreditar no que meus olhos, marejados, viam. Mais uma daquelas tramas que só a vida mesma redige à perfeição, “Homens de Coragem” é levado até o encerramento com um decoro que, a um só tempo, comove e inspira. Quem não se sensibiliza com o drama de homens que se perdem por quem jamais hão de conhecer tem o pretexto de assistir ao filme pela qualidade técnica. Mas eu acho muito difícil.


Filme: Homens de Coragem
Direção: Joseph Kosinski
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.