Filme ‘sessão da tarde’ que acaba de chegar à Netflix é perfeito para aqueles dias em que você não quer pensar em nada Robert Palka / Netflix

Filme ‘sessão da tarde’ que acaba de chegar à Netflix é perfeito para aqueles dias em que você não quer pensar em nada

É da natureza do cinema eternizar, momentos e pessoas. Assistir a um bom filme deixa a sensação de que, de algum lugar, num momento bastante específico de nossas vidas, as pessoas que vemos na tela já fizeram parte do nosso cotidiano, ou ao menos já nos deparamos com elas pelos relatos que fomos ouvindo ao longo dos anos.

“O Rei das Fugas” (2021) traz uma história que, claro, não é parte do folclore moderno do brasileiro, e mesmo assim tem uma relação muito próxima conosco. Temos uma trajetória pródiga quanto a glamourizar bandidos — no cinema e fora dele, que se diga —, fenômeno que ocorre no mundo todo, desde sempre. Por aqui, essa tradição se firmou há mais de meio século, quando Rogerio Sganzerla (1946-2004) contou a história de João Acácio Pereira da Costa, o bandido da luz vermelha, no filme de mesmo nome, em 1968. O trabalho inaugural do cineasta polonês Mateusz Rakowicz vai por essa linha, realçando estereótipos de tipos como seu protagonista, encarado como uma espécie de vítima social, ainda que o propósito fundamental do longa não fosse esse.

Conhecido na Polônia por sempre conseguir escapar do cerco da polícia, Zdzisław Najmrodzki (1954-1995), o tal rei das fugas do título, conseguiu tambem ser encarado à luz da estranha mitologia que louva malfeitores. Najmrodzki, o Najmro, é encarnado com zelo especial por Dawid Ogrodnik, que não apresenta nenhuma dificuldade em dar vida a seu personagem, uma pessoa de verdade que viveu num país que já não existe mais. O “reinado” de Najmro começa a se estabelecer na década de 1980, momento em que a Polônia ainda era uma das repúblicas socialistas soviéticas. Decerto uma figura como Zdzisław Najmrodzki não alcançaria a proeminência que alcançou na Polônia de hoje, um país em franco desenvolvimento e um dos mais destacados membros da União Europeia. Portanto, há que se enxergá-lo com os olhos de alguém que vivenciou experiências que nunca mais hão de se repetir.

O deslocamento narrativo para esse tempo e essa terra acessíveis apenas por intermédio da imaginação é o grande trunfo de que o roteiro do diretor, coescrito com Lukasz M. Maciejewski, dispõe para dar significado à história, malgrado Rakowicz não se perca entabulando cenários extremamente fiéis à realidade, o que preserva seu trabalho do engessamento. “O Rei das Fugas” é uma peça assumidamente voltada à diversão, e o elemento cômico do enredo é o que vai prevalecendo, aos poucos, com o retrato jocoso das situações em que Najmro se envolvia. O filme é, sim, uma cinebiografia desse homem, vivazmente interpretado por Dawid Ogrodnik, é, sim, o registro de um tempo já morto, mas é também uma produção complexa, sobretudo para os padrões poloneses. A opção por usar a câmera lenta de modo reiterado, precisamente para frisar a informação de que estamos num passado longínquo, revela-se mais eficaz do que se poderia pensar, por ajudar na composição histórica do que é contado e ainda resultar num efeito divertido. Por outro lado, um grande problema do filme é a trilha. O emprego de hits que foram sucesso em outras conjunturas é garantia de que um filme vá, no mínimo, garantir o resgate de doces lembranças; contudo, há passagens em que tal recurso fica completamente descasado do que se apresenta na tela.

“O Rei das Fugas” começa a ficar interessante mesmo, como sói acontecer em filmes dessa natureza, no momento em que Najmro se apaixona. A moça é uma humilde funcionária do Kino Tęcza, o Cine Arco-íris, que costuma frequentar nas raras vezes em que tem uma folga entre um e outro trambique. Ogrodnik consegue fazer com que o espectador compre a paixão de seu personagem, e também o comove ao fazê-lo perceber, junto com Najmro, que essa possível relação não tem futuro, já que o malandro é o delinquente mais famoso da Polônia. Sua vida de mundana glória graças às fugas, que, conforme se vai ver, deve-se menos a uma suposta genialidade torta que à incompetência policial, é uma farsa. Como se não bastassem os conflitos existenciais fora de hora a consumir o pouco juízo de Najmro, ele também tem de se haver com seus convivas no submundo, Młoda, papel de Sandra Drzymalska, e Teplic, interpretado por Andrzej Andrzejewski, cada vez mais desconfiados de que toda essa súbita meiguice bote a reputação (e a liberdade) da gangue a perder, antagonismo em nada comparável à repulsa que Antos, personagem de Jakub Gierszał, passa a lhe sentir. Convicto ou não de sua mudança interior, Najmro, e o restante da quadrilha são observados de cada vez mais perto por Barski, vivido por Robert Więckiewicz, e Ujman, de Rafał Zawierucha, membros da Milícia dos Cidadãos.

Quiçá o aspecto de situar o público num outro tempo é o que mais desperta o interesse de quem assiste pela história que Rakowicz se propõe a contar em seu primeiro longa. Uma ou outra escorregadela principalmente quanto ao ritmo não são capazes de empanar o brilho de “O Rei das Fugas”, mas para tanto há que se admitir que se tratando da vida de um criminoso, carismático, mas um criminoso assim mesmo. Vencida essa barreira, fica a vontade de esbarrar em mais trabalhos de maior fôlego de Mateusz Rakowicz, que não atingiu sua maturidade artística. Tempo e vocação não lhe faltam.


Filme: O Rei das Fugas
Direção: Mateusz Rakowicz
Ano: 2021
Gênero: Comédia/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.