Filme da Netflix — que você provavelmente não viu — é uma das melhores ficções científicas da história do cinema Paramount Pictures / Netflix

Filme da Netflix — que você provavelmente não viu — é uma das melhores ficções científicas da história do cinema

Filmes que, de uma forma ou de outra, tratam do homem, sua interação com o ambiente e as consequências mais deletérias desse fenômeno — o apocalipse, no pior cenário — já se tornaram o clichê por excelência do cinema mundial hoje. Parece que diretores de todas as colorações ideológicas, que professam fés as mais variadas, com visões de mundo mesmo incoerentes com o ofício de que tiram o sustento são, de tempos em tempos, acometidos de uma descrença fundamental da vida, que, ao menos naquela quadra de sua história, redunda em trabalhos de teor escatológico em maior ou menor grau. Foi assim com Stanley Kubrick quando da concepção de “2001 — Uma Odisseia no Espaço” (1968); Ridley Scott, que legou à humanidade “Blade Runner — O Caçador de Androides” (1982); e os então Andy e Larry Wachowski, hoje Lilly e Lana, de “Matrix”. O tema é tão rico, e complexo, e trivial, que os três filmes tiveram continuações, cujo impacto, malgrado a evolução tecnológica de recursos como efeitos de computação gráfica e maquiagem, claro, foi infinitamente menor que o dos precursores.

Alex Garland é dos poucos cineastas a serem capazes de subverter a pletora de lugares-comuns que sufocam tais enredos, embora seja precipitado se considerar esta uma moda superada. Saborosamente confuso, seu desnorteante “Aniquilação” (2018) é, decerto, das produções mais originais no ramo — ainda que transposto do livro do americano Jeff Vandermeer, publicado no Brasil em 2014 pela Intrínseca (se se optar por excluir filmes adaptados de trabalhos literários, aí mesmo é que não resta pedra sobre pedra). Encontra-se no leito de “Aniquilação” os mesmos elementos que transformaram o drama “Stalker” (1979), de Andrei Tarkovski, ou o tragicômico “Dr. Fantástico” (1964), também de Kubrick, em clássicos não só do subgênero nem do cinema, mas da manifestação artística do homem através das épocas, e por incrível que possa parecer, “Aniquilação” foi fracasso de audiência, por causa da divulgação tíbia, quase clandestina, rescaldo do vexame após o ousadamente sofisticado “Mãe!” (2017), levado à tela por Darren Aronofsky. Recomendo-os todos como um pai.

O roteiro de Garland, extremamente fiel à narrativa de Vandermeer, reedita a máxima do corpo estranho vindo de outra dimensão a fim de balançar a monotonia do estabelecido, no caso, um meteoro, que abalroa um farol num lugar afastado. Na sequência, Lena, a protagonista vivida por Natalie Portman, é sujeitada a um interrogatório numa sala de vidro. Quem conduz o processo é Lomax, do subaproveitado Benedict Wong, vestido com o traje especial que o protege de resíduos biológicos que Lena possa ter trazido de sua missão por um território desconhecido, do qual apenas ela foi capaz de regressar. À medida que esse braço da história avança, o tipo a que Portman dá vida vai se deslindando. Lena é uma bióloga renomada, já integrara as Forças Armadas, teria tudo para estar plenamente realizada, mas sofre com o desaparecimento do marido, Kane, de Oscar Isaac (tedioso como sempre), militar, que acredita ter sido morto em combate em consequência de uma missão secreta fracassada. Minutos depois, abusando dos flashbacks, o diretor põe Lena e Kane frente a frente, no quarto dela, e pela forma como o personagem de Isaac volta, à socapa, se esgueirando pelos cantos, falando pouco mais alto que um sussurro, se supõe que ele tenha desertado. No flashback do flashback, a vida do casal é de uma felicidade banal, como só a verdadeira felicidade pode ser. Essa imagem, de um homem suave, leve, brincalhão nas conversas de travesseiro com a mulher, amoroso, enfim, é confrontada, mantido um bom intervalo, com a figura de um insano, o olhar baço da loucura, abrindo o ventre de um colega porque convicto de que o homem é hospedeiro de uma criatura multicelular que se alimenta dele e se prepara para subjugar os demais. O texto de Garland faz questão de frisar que nenhum dos voluntários pôde voltar do Brilho, esse mundo paralelo e perigoso, porque ou morrem, dada uma condição qualquer que veda a sobrevivência, ou enlouquecem e se matam e se matam uns aos outros. Se Kane voltou, o que se passa a ser objeto de especulação é sua índole. Ele matava por que se sabia superior? Por que tinha a certeza de que jamais seria pego? O que era aquilo que se movia nas estranhas do outro? Ao contrário do que alega uma personagem em outro momento, não eram as suas próprias vísceras, reagindo a um estímulo exógeno. Kane é um monstro ou o novo redentor do gênero humano?

Lena também vai parar no Brilho, junto com outras quatro sumidades em suas áreas — a amarga doutora Ventress, interpretada por Jennifer Jason Leigh; a lasciva Anya, papel de Gina Rodriguez, que se aproxima da bióloga com terceiras intenções; a introvertida Josie, vivida por Tessa Thompson; e a serena Cass, personagem de Tuva Novotny —, a fim de continuar três anos de investigações sobre o mistério daquela faixa de árvores, que de longe lembra um paredão de água contra a luz a compor um majestoso arco-íris. Depois da sequência em que Anya descobre que Lena e Kane são casados, a personagem de Rodriguez é a única a morrer vítima do ataque de uma fera quase indescritível, híbrido de urso e rinoceronte, e Garland se vale dessa deixa para retomar o conflito central de seu filme: até que ponto Lena e Kane são tão vulneráveis quanto os outros, se o são, e em que momento desabrocha neles o componente perverso, se desabrocha? Teriam se corrompido com a permanência no Brilho ou sempre foram essencialmente levianos, dissimulados, perversos e apenas aguardavam a oportunidade de se tornar quem eram?

Ao contrário do que pode imaginar a leitora aflita, o leitor apressado, não revelei quase nada. Juntamente com “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), Alex Garland compõe um mosaico dos mais intrincados (e ricos) sobre o lugar do homem num mundo que ele mesmo faz questão de devastar, até que experimenta do próprio veneno, tudo permeado por questionamentos acerca da debilidade da autoproclamada infalível tecnologia e da autossabotagem biológica a que sucumbiria o homem num cenário hostil à vida. Ancorado em imagens de apelo estético inegável, como nas cenas do desfecho, “Aniquilação” nasceu icônico, e decerto é uma das maiores alegorias apocalípticas de todos os tempos.


Filme: Aniquilação
Direção:
Alex Garland
Ano
: 2018
Gêneros
: Ficção científica/Terror
Nota
: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.