Novo filme da Netflix vai te levar para dentro dele e te agonizar por 100 minutos Neo Baepi / Netflix

Novo filme da Netflix vai te levar para dentro dele e te agonizar por 100 minutos

Muito mais que um ato de autopropalado heroísmo, a luta por liberdade é o combustível mesmo que torna possível à humanidade abandonar de vez o absurdo de uma existência anacrônica para milhões de pessoas, congeladas num presente que nunca muda — e pior, eternamente voltada ao passado — e marche rumo ao futuro. Claro, para muita gente não interessa que todos os homens livrem-se de seus grilhões e encontrem algum sentido na vida, caminhando com as próprias pernas; justamente por essa razão é que perseguir o sonho de viver desobrigado de um peso que a ninguém deveria ser imposto torna muito mais que uma filosofia, uma meta: ser livre, custe o que custar, é o que dá à vida a natureza da tal dádiva que nos concede a Providência, plano que o próprio Deus abençoa e estimula.

A África do Sul passou por essa confrontação, tendo de acertar as contas com sua história, combater a esquizofrenia de um regime que segregava indivíduos que compõem sua parte mais vistosa e retomar do zero o curso dos acontecimentos, a fim de escrever um destino novo e mais justo para seu povo. Ao longo da década de 1980, o país foi bombardeado pela ação de movimentos que não deixavam que se consumasse sem maiores empecilhos a política de manter brancos e negros cada qual no lugar que a conjuntura social lhes reservou, isto é, brancos no poder e negros tomando por lei tudo aquilo quanto dissessem. É esse o registro que “Silverton: Cerco Fechado” (2022) tenta fazer ao longo de 101 minutos, durante os quais o diretor, o sul-africano Mandlakayise Dube, aborda o regime do apartheid sob um prisma quase ignorado: o da luta armada. Com a defesa ousada (e questionável) da necessidade de se pegar em armas para reivindicar direitos inerentes à natureza do homem, não importa onde tenha nascido, tampouco a cor de sua pele, Dube confere a seu trabalho a aura de documento histórico de uma época tão obscura quanto dotada de complexidades fáticas que pedem uma análise um pouco mais detida e, de preferência, desapaixonada. E esse é um calcanhar de Aquiles do enredo, que se ancora no roteiro de Sabelo Mgidi a fim de esquadrinhar eventos que se perderam por completo na bruma do tempo: a narrativa é passional em demasia, restando ao espectador tirar conclusões baseadas no puro achismo. 

Flertando desabridamente com o sensacionalismo, o filme opta por concentrar-se no sequestro de um grupo de clientes e funcionários de um banco em Joanesburgo por uma quadrilha nada comum. O bando de Calvin Khumalo, vivido por Thabo Rametsi, não visa a roubar nada, como ele deixa claro, mas antes se tratasse de um assalto como outro qualquer. Como resta evidente de imediato, a ação é parte de uma estratégia política a fim de pressionar pela soltura de Nelson Mandela (1918-2018). O homem que personificou a luta pela igualdade racial e pelo fim do sistema que chancelava a discriminação de cidadãos negros por brancos, integrassem ou não as instituições de Estado do país, havia sido encarcerado em agosto de 1962 por ter tomado parte em insurreições de cunho político, em defesa aberta da liberdade de expressão e da condenação do racismo institucional vigente na África do Sul pela comunidade internacional. Formalmente indiciado em 12 de junho de 1964, o ativista foi condenado à prisão perpétua por sabotagem e conspiração. Mandela só foi libertado 27 anos depois de ter sido preso, em 11 de fevereiro de 1990, e dez anos depois da invasão comandada por Khumalo.

Dube é competente ao situar o público em meio ao turbilhão de acontecimentos que tomavam corpo na África do Sul no decorrer dos anos 1980 até a efetiva soltura de Mandela, eleito o primeiro presidente negro do país há exatos 28 anos, em 27 de abril de 1994. As sequências de conflagração, entre a quadrilha de Khumalo e os policiais, dão substância dramática ao longa, mas a ousadia do diretor em evidenciar os desacertos entre os próprios guerrilheiros, momento em que algumas reviravoltas vêm à superfície da trama, não permitem que o filme permaneça indefinidamente cristalizado no ramerrão das intermináveis negociações entre os terroristas e a polícia. Um clichê que, decerto, desencaminha histórias desse gênero facilmente. 

Perto do desfecho, o filme até guarda espaço para uma bem elaborada, malgrado ligeira, discussão sobre colorismo, uma das faces mais abjetas da discriminação racial, justamente por iludir aqueles que deveriam ser os primeiros a se assumir negros, a despeito da alvura de sua pele. Como se pode denotar de seu trabalho, Mandlakayise Dube não tem o menor problema em se declarar um militante, com tudo o que isso pode ensejar de bom e de ruim. Contudo, um pouco mais de equilíbrio só teria feito “Silverton: Cerco Fechado” ainda mais eloquente.


Filme: Silverton: Cerco Fechado
Direção: Mandlakayise Dube
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.