Muito melhor do que você possa imaginar, filme da Netflix vai levá-lo às profundezas da mente humana Baram Pictures / Netflix

Muito melhor do que você possa imaginar, filme da Netflix vai levá-lo às profundezas da mente humana

Crises têm o condão de, ao passo que abalam certas estruturas, mexem com o que estava já meio podre, quase para desabar, mas passava ao largo, por comodismo, má vontade ou um gosto meio duvidoso. Nesses momentos, a arte — o cinema, mais precisamente — lança ao rosto do público manifestações que, não só cutucam feridas que teimam em não cicatrizar, como ajudam a sociedade a encontrar as respostas de que tanto carece para as questões com que vira e mexe acaba esbarrando. Ainda que colateralmente (e depois de muito tempo de filme), em “Rastros de um Sequestro” (2017), o diretor sul-coreano Jang Hang-jun traça um painel interessante do que pode vir a se tornar a vida de duas famílias, trajetórias de início descoladas uma da outra, quando da chegada repentina de uma situação adversa.

Para conseguir se estabelecer como uma democracia consolidada no continente asiático — depois de três anos de intensos conflitos com o território setentrional da Península da Coreia, entre 1950 e 1953 —, a Coreia do Sul escalou um paredão de dificuldades socioeconômicas que, ao termo de décadas de sacrifício por parte da população, resultou num oásis de riqueza naquela região específica da Ásia Oriental, fundamentado em pilares educacionais sólidos. De roldão, veio boa parte do que passou a constituir a identidade mesma do país: respeito estrito aos princípios da civilização, valorização da meritocracia e a avidez por se fazer conhecida também graças à excelência artística.

Como lugar nenhum é um paraíso, em que tudo se resume a fruir os prazeres terrenos à espera da vida eterna, a Coreia do Sul não aprendeu a lidar com os temas mais íntimos da natureza humana — e se lhe serve de consolo, os orientais como um todo não são lá muito sensíveis a eles. A pecha do fracasso, legítimo anátema que estigmatiza homens orientais que, em não tendo conseguido empreender fortuna ou que, por uma ou outra razão, são destituídos dela, é um fantasma a assombrar esse estrato da população sul-coreana. Tomados por párias mesmo entre seus pais e seus próprios filhos, essas pessoas não raro apelam a medidas extremas (e inócuas) — o índice de suicídios entre indivíduos do sexo masculino de 20 a 40 anos na Coreia do Sul é o mais alto do mundo entre países desenvolvidos, 28,9 por 100.000 habitantes, grande parte diretamente relacionados a questões como culpa, insucesso financeiro e honra. O que evidencia que se está diante de um problema social complexo, que permeia a economia, a saúde pública e até a própria cultura sul-coreana.

O enredo de “Rastros de um Sequestro” se vale, ainda que com muita parcimônia, desse argumento — em especial no introito da narrativa, quando tudo é absolutamente nebuloso, tanto mais sob esse aspecto — a fim de apresentar a vida de Jin-seok (Kang Ha Neul) e sua família. Jin-seok é mostrado como um rapaz comum, que passa a morar com os pais e o irmão mais velho, Yoo-seok (Kim Mu Yeol), numa casa melhor, mais espaçosa, num bairro tranquilo de Seul. Nada parece abalar o sossego alienado desse clã, até o sequestro de Yoo-seok, que permanece desaparecido por dezenove dias. Quando finalmente Yoo-seok pôde deixar o cativeiro e voltar para casa, Jin-seok nota que o irmão não é o mesmo, e qualquer tentativa quanto a entender o comportamento errático dele resta baldada, uma vez que Yoo-seok desenvolveu uma amnésia dissociativa que o impede de se lembrar o que teria passado nas mãos dos sequestradores, decerto uma reação natural do organismo frente a tamanho choque. Desconfiado, à medida que observa a evolução do quadro de Yoo-seok mais de perto, Jin-seok atenta para atitudes estranhas que o irmão não tinha antes, como o hábito de sair a altas horas. Esse era o indício que lhe faltava para que se convencesse de que o sujeito que passara a conviver com a família não é Yoo-seok, e como a polícia não lhe dá crédito, já que o personagem tem um histórico de doença mental, diagnosticada e tratada, o protagonista decide investigar o caso por conta própria.

A partir de então, se dá o primeiro plot twist de “Rastros de um Sequestro”, em que o espectador passa a saber que há, sim, algo de obscuro por trás da capa de bom moço de Yoo-seok. Conforme a trama se adianta, revela-se igualmente que houve um evento trágico a unir a família dos dois, que na verdade, como muita gente já deve ter suspeitado, não são irmãos e, mais ainda: são inimigos figadais — malgrado Jin-seok nem faça ideia do motivo. Um acidente de carro, no qual o verdadeiro Yoo-seok sofre um trauma que o deixa entre a vida e a morte, desemboca na chave para a solução do mistério central do roteiro. A fim de arcar com os custos da cirurgia que pode salvar o irmão, Jin-seok aceita o único trabalho que lhe aparece: matar a esposa de um médico — que, sabe-se depois, é o mesmo profissional que assiste Yoo-seok —, a mando do próprio marido, inspirado por razão igual à do protagonista do filme argentino “La Misma Sangre” (2019), de Miguel Cohan. O homem lhe pede que Jin-seok dê cabo da mulher, mas poupe seus dois filhos, uma adolescente e um menino de quatro ou cinco anos. O protagonista vai até o último limite de sua própria baixeza; é tomado de um arrependimento súbito e fora de hora, que o atrapalha, e vai representar a sua perdição mesma. Jin-seok mata a esposa e a filha do homem que o contratara, mas poupa o garoto. E passados 20 anos, ele aceita até virar outra pessoa para se vingar.

Sem dúvida, um dos elementos cênicos mais ricos no filme de Jang Hang-jun é a fotografia, que lança mão do contraste e do realce de luzes e sombras, pronunciando o conceito noir do longa, que também poderia ser catalogado como uma tragédia grega clássica, em que o anti-herói — neste caso, são dois — é arrancado de sua condição imaculada de moral a toda prova, de sua vida acima do bem do mal e, jogado na vala comum de um destino irônico, soberano de todas as criaturas, é obrigado a enfrentar o algoz que fizera sua existência tão infausta.

Por mais que empregue recursos narrativos já usados à exaustão em filmes sul-coreanos — como se observa em “Old Boy” (2005), de Park Chan Wook; “Eu vi o Diabo” (2010), dirigido por Kim Jee Woon; “Mother” (2010), de Bong Joon-ho; e “Pièta” (2013), de Kim Ki Duk — “Rastros de um Sequestro” é, certamente o mais inventivo desse rol, sem prejuízo do aspecto filosófico, abordado em tal ou qual proporção em cada uma das muitas reviravoltas do enredo. O cinema da Coreia do Sul tenta absorver as inúmeras transformações pelas quais passou o mundo e sua própria sociedade ao longo de quase setenta anos sem descuidar da forma. E o faz gloriosamente.


Filme: Rastros de um Sequestro
Direção: Jang Hang-jun
Ano: 2017
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.