A guerra justa é a que o líder morre no lugar do inocente

A guerra justa é a que o líder morre no lugar do inocente

A vida de um único inocente não justifica uma guerra. Porque a morte desta única pessoa é a extinção de toda a existência, e privar alguém do direito à existência — principalmente supondo que nunca mais terá esse direito — é a maior e mais cruel de todas as censuras. Revoltamo-nos contra a natureza por nos privar da vida, e nos damos o direito de antecipar a natureza ao condenar os outros (é sempre os outros) à morte, por antecipação.

Ninguém deveria ter o direito de deliberar sobre a vida ou não de terceiros inocentes, como se permite aos líderes e acontece em relação às principais vítimas humanas da guerra: os soldados e os civis. A maioria dos militares o são por obrigação e não por opção. Ao deliberar uma guerra um líder torna-se o responsável direto pela destruição e morte de cada um desses seres humanos envolvidos, sumariamente condenados. Não há, por exemplo, como não culpar os líderes pela morte dos milhares de soldados e mais de 700 civis ucranianos, até a terceira semana de guerra, na Ucrânia. Nem, tampouco, de não os culpar pelas 1.616 vítimas civis mortas no ataque noturno que deflagrou a guerra do Iraque, em 2002 (chamada “Operação Choque e Pavor”). Somente as convenções legais não chamam isso, também, de terrorismo. Mas é terrorismo, da perspectiva das vítimas.

Mesmo entre os povos ditos mais “civilizados”, o aparato legal, institucional e a cultura, daí decorrente, formam a mentalidade da guerra e se encarregam de justificar a violência de estado em seu grau mais elevado. Nem por isso é certo e deixa de ser um crime. O único código válido, neste caso, não são os corpus legais instituídos, mas a opinião das vítimas. Se pudesse falar, a quase totalidade dos mortos condenaria a guerra com a mesma veemência da quase totalidade dos sobreviventes mutilados. Justamente porque a vida é única, e não há volta para cada ser humano que a perde. Não há volta possível para cada soldado que, oprimido por ordens superiores, morreu ou perdeu a vida, ao perder um membro, um rosto, a saúde mental. Não há volta possível para cada mulher, cada criança e cada velho vítima dessa coisa inominável conhecida como guerra. A vida era só uma para as mais de 70 crianças mortas na Ucrânia, até o vigésimo primeiro dia de invasão russa. É só uma também para as mais de 1,5 milhão refugiadas só neste conflito, até agora. Qual foi a culpa delas? Se não tinham ou não têm culpa, que nome dar a isto senão o de crime, e hediondo por se tratar de crianças?

O que leva Vladimir Putin a acreditar que os seres humanos da Criméia merecem ser livres e os da Ucrânia não? O fato de serem russos? Russos são melhores que o resto da humanidade, ou vice-versa? Quem disse isso, e por quê? A guerra é o maior de todos os crimes porque também produz o maior o número de vítimas possível, em relação a qualquer crime comum contra a vida. E, além disso, também o maior crime contra o direito de propriedade, porque destrói o patrimônio individual e coletivo em escalas sempre consideráveis. Guerras destroem cidades inteiras, países inteiros, e invadem a nossa individualidade e a ultraja sem nenhuma cerimônia — e nenhuma corte mundial se opõe a isso, porque a guerra, sendo legítima, tornou-se legal e tem proteção da lei e dos tribunais. Os responsáveis em promovê-las são os políticos e seus sócios obscuros. Além de derivarem, quase sempre, de interesses privados.

Por isso, a guerra só será justa quando não for permitidos bombas nem exércitos. Os soldados serão os próprios líderes em disputa, cada um armado até os dentes. A nação vencedora será a do líder que mutilar ou matar seu(s) colega(s). Os inocentes (soldados, civis e animais) deixarão de ser mortos por causa de motivos que desconhecem. E nunca mais haverá guerras, também, porque a covardia dos “carajosos” ficará, enfim, escancarada (é fácil falar em coragem quando o corpo que leva o tiro é o do “soldado desconhecido”). Afinal, os líderes representam a sociedade ou é a sociedade que os representa, indo para o abatedouro em seu lugar, enquanto vão aos jantares em nosso lugar? Quanto aos civis que lotam comícios a favor de guerras distantes, eles não morrem nelas. Não têm moral para legitimá-las porque também não têm sua cidade bombardeada, sua casa destruída, seus filhos mortos ou o próprio corpo dilacerado por um explosivo. Funcionam como farsa. É bem provável, por outro lado, que todo civil sob ataque seja radicalmente contra a guerra, porque é a vítima do explosivo que destrói sua cidade, sua casa ou sua vida. Seria muito pedagógico, portanto, se os primeiros sofressem como os últimos as mesmas desgraças, para repensar seu entusiasmo bélico.

Egoísta, o ser humano só compreende com clareza indiscutível o absurdo da guerra quando é o condenado a perder a casa, o parente amado ou a própria vida, na próxima explosão, e prever a dor que vai anteceder uma morte horrível. Como exercício de empatia, pensar nisso é bastante útil.