Os loucos manejam as armas, e nós assistimos

Os loucos manejam as armas, e nós assistimos

O encontro com Putin ocorreu em uma dacha — espécie de casa de campo russa — nos subúrbios de Moscou, em junho 2009. O presidente russo na época, Dmitri Medvedev, era um daqueles homens que haviam enriquecido no setor madeireiro com o fim da União Soviética. Com ele o presidente Obama havia jantado na noite anterior, “num amplo gazebo de vigas de madeira” da “enorme propriedade cercada por bosques de árvores muito altas”. Na conversa “cordial” Medvedev privilegiara assuntos pessoais: hábitos, exercícios físicos, interesse pela banda de hard rock Deep Purple. Quase não tratou de política com o presidente americano, e havia uma explicação para isso. A conversa realmente séria ocorreria horas depois na dacha do primeiro-ministro, Vladimir Putin. Era quem dava a última palavra e, segundo Obama, em outro trecho, o homem que “parecia ser o líder de uma organização criminosa.” E ainda — Freud gostaria dessa parte — um homem preocupado com a “superpotência”.

O encontro entre os dois líderes, relatado nas envolventes páginas de “Uma Terra Prometida”, de Barack Obama, joga luz sobre as reais motivações da guerra da Ucrânia e de outras guerras. “Em alguns momentos, a conversa ficou tensa, em especial sobre o Irã”, a qual irritou o primeiro-ministro de Medvedev. Putin não recuaria num contrato de 800 milhões de dólares que “poria em risco o faturamento e a reputação dos fabricantes de armas russos”, junto aos persas. A transição do socialismo para a economia de mercado (sim, a Rússia é um país capitalista) não melhorou o caráter dos homens, claro. O novo regime apenas substituiu o antigo Partido Comunista por grupos mafiosos que só serviram para rechear as listas da “Forbes” com um surto de bilionários oriundos daquele país. Já o povo, este é apenas um inconveniente com o qual seus “representantes” precisam lidar. Caso não fosse um inconveniente não teria sentido tanta violência contra civis, como a que se desencadeou na Ucrânia, onde o exército russo atacou uma maternidade!

Guerras matam pessoas e destroem países inteiros, podendo ser interpretadas como terrorismo oficial, de Estado: suas consequências não diferem em nada da ação terrorista de grupos como Al Qaeda, sendo discutível se os exércitos de fato servem às nações ou a grupos econômicos. Em compensação, as guerras dão enormes lucros para grupos e indivíduos, alguns especializados na compra e venda de armas. Tudo leva a crer que era o caso do Irã, contado por Obama. A guerra interessa também aos bilionários do setor energético, como Leonid Mikhelson, dos setores petroquímico e gás. Riquíssima em commodities, a Ucrânia detém a maior reserva de gás natural do mundo — vital, por exemplo, para a economia alemã. Visto por este ângulo, o país do já célebre Volodymyr Zelensky é uma gigantesca fonte de capitais, e não apenas de românticos “laços históricos e culturais” com a “Mãe Rússia”; esta, aliás, tratando seus descendentes crescidos como uma megera da pior espécie. É consistente a hipótese de que a Ucrânia é apenas uma mina de ouro em “mãos erradas”, do qual o olho gordo do capitalismo russo — leia-se oligarquias russas — quer se apropriar.

Putin, é um dos homens mais ricos de seu país. Um daqueles indivíduos que talvez façam parte da mais discreta e influente organização mundial, o lendário Clube Bilderberg. Do alto desta montanha de dinheiro tem-se uma nova visão dos discursos oficiais. Difícil não acreditar que é tudo ensaiado para iludir os povos. Certamente, os Estados fazem concessões aos seus cidadãos comuns — afinal, a massa é formada por milhões de indivíduos. Eles precisam ser contidos com uma distribuição mínima de recursos, capaz de garantir a segurança do sistema, manipulado por uma minoria. Há lógica em prometer “casa”, “emprego”, “dignidade”. Há lógica em identificar-se com discursos patrióticos e nacionalistas: ela, a “Mãe Rússia”, frequenta a língua de Putin em toda sua glória e esplendor, o que cala fundo na alma do seu povo. Tudo isso faz sentido para o cidadão comum, mas tudo isso pode ser apenas a ração diária para manter o apoio popular a interesses não socializáveis, e até sombrios. Há lógica em homens como Putin dedicar-se ao Estado — entidade supostamente pública, com fins supra-individuais —, quando se sabe que o Estado é o principal instrumento universal de distribuição de renda. Não é à-toa que dele se apropriam os ricos, em especial os bilionários e ditadores. Talvez estejamos agora pagando o preço por achar isso certo. No Brasil, onde 19 milhões de pessoas passam fome, 1% da população detém 44% da renda nacional. Sempre, em qualquer lugar, o Estado é mais generoso com as oligarquias.

Normalmente, nada daquelas “políticas públicas” tem a ver com compaixão, empatia ou solidariedade humana. É só um mecanismo de defesa de um estrito grupo de privilegiados. Se tivesse algo a ver com compaixão, empatia ou solidariedade humana, não se trocaria seis por meia dúzia: a paz de milhões de pessoas (russos) pelo pesadelo de outros milhões (ucranianos). Afinal, somos todos seres humanos, iguais nos sonhos e na dor. Milhares de ucranianos foram desalojadas de suas casas e forçadas a rumar para as estradas e estações de trens, em busca de refúgio entre desconhecidos, em países dos outros. Mães com seus filhos pequenos, em montes indistintos, são expulsas de seus lares, obrigando-se a esconder em porões subterrâneos, como baratas, para não morrer sob o ataque cruento de bombardeios na superfície. É cruel, é desumano e covarde! Mas o jogo dos bilionários (entre os quais Vladimir Putin) é implacável e sem coração. A pequena oligarquia que domina o mundo não pode abdicar de alguns iates (tudo em excesso: coleções de carros de luxo, por exemplo), ainda que o custo deste excesso dependa de crianças serem despedaçadas por balas de fuzis, de tanques de guerra ou por mísseis. Qual dos sócios se importa com este horror, desde que a adega continue fornida?

A dor e o sofrimento, desde que sejam alheios, podem ser infinitos e não entram nos seus cálculos egoístas. É razoável concluir, portanto, que a humanidade tem inimigos muito claros, dispostos se preciso a explodir bombas nucleares sobre nossas cabeças. Ou será que não são inimigos, embora nos matem o tempo todo só para ficar ainda mais podres de ricos, e cada vez mais vazios, e cada vez mais insaciáveis e, assim, cada vez mais perigosos?