Perturbador e sombrio, novo documentário da Netflix abalará todos os espectadores

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A queda misteriosa de um Boeing 737 Max da Lion Air chocou todo o mundo, e em especial os profissionais da aviação. Não se sabia o que poderia ter provocado o acidente — se é que havia mesmo sido um acidente —, e a responsabilidade de imediato recaiu sobre a companhia, que até então nunca tinha apresentado uma tragédia em seu histórico. Naquele 29 de outubro de 2018, o voo 610 não aterrissaria em seu destino, mas encontraria o mar de Java, onde os 189 passageiros e tripulantes se depararam com uma morte brutal.

Seguiram-se especulações de toda sorte e logo se estava levantando acusações levianas sobre a possível qualificação pouco confiável do piloto, o indiano Bhavye Suneja, que se formara nos Estados Unidos, como quase todos os outros. Então inatacável, a reputação da Boeing encerrava tanto prestígio que o slogan da empresa era repetido por qualquer um que passasse por um aeroporto. “Se não for Boeing, eu não vou!”, era o que se dizia, deixando claro que a gigante dos ares de fato era a melhor opção, a mais rápida, a mais confortável e, sobretudo, a mais segura. O que se provou uma farsa depois que outro 737 Max voltou a despencar do céu, num intervalo de cinco meses, desta vez na Etiópia.

“Queda Livre: a Tragédia do Caso Boeing” examina os dois episódios e como repercutiram na imprensa mundial, dando ênfase ao cenário pós-catástrofe, apontando a filosofia equivocada da Boeing, que sempre optou por esconder tudo ao máximo, tornando-se insustentável qualquer tentativa de autodefesa. O diretor Rory Kennedy e os roteiristas Mark Bailey e Keven McAlester realizam um trabalho fartamente documentado e que evita a exploração emocional das histórias, o que resulta num texto eminentemente jornalístico, embora haja lugar para construções melodramáticas. Contudo, o que mais chama atenção no documentário é a escolha corajosa por denunciar a condução equivocada da Boeing quanto a sua metodologia de trabalho, a começar pelo chão da fábrica, onde os aviões eram montados sem nenhum controle de qualidade, o que pode se verificar pelo número de resíduos encontrados nas aeronaves já prontas para serem comercializadas. Lascas de metal em feixes de fios, um detalhe aparentemente ínfimo, eram frequentes e poderiam ocasionar curtos-circuitos e mesmo incêndios; também não era raro ficarem para trás desenhos, trancas, ferramentas e até uma escada, que se enganchasse em alguma estrutura certamente degringolaria em fatalidade. Chegou-se ao ponto de um avião ser entregue sem calço no trem de pouso — o que, por óbvio, não passaria sem a devida inspeção, mas dá a ideia do quão fora de controle estava a situação da Boeing, graças a uma política de contenção de gastos irracional, que reduziu o número de fiscais de quinze para um. Apesar da bagunça na linha de montagem da empresa, a causa dos acidentes em dois voos da Boeing era ainda mais grave.

Um sistema denominado MCAS (Maneuvering Characteristics Augmentation System, ou “sistema de aumento de características de manobra”, em tradução literal), que impediria que o avião apagasse em caso de pane, fora desenvolvido a fim de manter o eixo da aeronave, corrigindo desvios nas asas, as partes mais altas e mais distantes da fuselagem. O mecanismo apresentou falhas depois de captar informações de um sensor já avariado, o que levou o nariz do avião para uma posição extremamente baixa, quando deveria continuar apontando para o horizonte. O empenho dos pilotos em manter a disposição original, uma luta desesperada (e perdida), foi o último ato de uma trajetória macabra, em que o destino de inocentes, implicados na falta de transparência da Boeing, estava selado: os condutores teriam parcos dez segundos a fim de neutralizar o sistema, cuja operação nem sabiam que estava em curso. E mesmo que soubessem, não saberiam de que forma lidar com ele. O MCAS não era citado, nem no manual do próprio piloto, nem nas orientações disponíveis na cabine. A Boeing chegou a afastar os pilotos que pleitearam aulas em simuladores de voo antes de comandar o jato, o que soou como uma conspiração no intuito de ludibriar a Federal Aviation Administration, a FAA (Administração Federal de Aviação), autarquia que se encarrega de fiscalizar e validar a aviação civil nos Estados Unidos, bem como nas águas internacionais correspondentes ao litoral americano. O que, por sua vez, permitiu à empresa realizar uma das campanhas de marketing mais agressivas de todos os tempos. Tudo para vender de uma vez todo o estoque de 737s possível e, por conseguinte, elevar o preço das ações da Boeing no mercado financeiro, em especial depois da fusão da companhia com a McDonnell Douglas, em 1997.

O documentário é todo pontuado por depoimentos de especialistas, como Andy Pasztor, jornalista que escreve sobre aviação e que cobriu o caso para o “Wall Street Journal”; e do ex-piloto Chesley “Sully” Sullenberger, a quem coube a façanha de pousar o AirBus A320 da US Airways no rio que divide Nova York e Nova Jersey, episódio retratado em “Sully: O Herói do Rio Husdon” (2016), de Clint Eastwood; além do deputado Peter DeFazio, presidente do Comitê de Transporte e Infraestrutura da Câmara, que chefiou a investigação do Congresso americano sobre os acidentes; e Garima Sethi, viúva do capitão Suneja, que revela a tentativa da Boeing e de certa imprensa em atribuir a seu marido a culpa pela primeira tragédia, na Indonésia, o que, mais uma vez, voltou os olhos do mundo para as chagas do capitalismo num acontecimento tétrico, marcado por ganância, desprezo pela vida e xenofobia. Dennis Muilenberg, presidente da Boeing quando das tragédias, foi demitido do posto. A companhia foi condenada a pagar uma multa de US$ 2,5 bilhões em 2021, como parte de um acordo com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Naquele mesmo ano, a receita da Boeing foi de US$ 76,6 bilhões.


Filme: Queda Livre: a Tragédia do Caso Boeing
Direção: Rory Kennedy
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 9/10