Samuel Fuller, o mais cult dos cineastas americanos

Samuel Fuller, o mais cult dos cineastas americanos

Roteirista, produtor e diretor da maioria dos seus filmes, Samuel Fuller é uma lenda da sétima arte, o mais cult dos cineastas americanos, celebrado no auge da crítica francesa dos “Cahiers Du Cinema” pelos jovens da Nouvelle Vague. O impacto dos seus filmes se mantém, apesar de terem sido feitos há mais de meio século, e funciona como um soco na cara do atual bom comportamento do cinema. Fuller contraria todos os consensos, de gênero, de protagonistas, de narrativas, jogando pesado e limpo com o espectador e o confrontando com a formação e o desmascaramento dos mitos. Seus heróis, histórias, lutas, diálogos são sempre antológicos e deslumbram gerações de espectadores e de estudiosos. Neste Especial, um painel ensaístico sobre seus principais filmes e o que eles nos deixam de herança.

O heroísmo possível

Os três primeiros filmes escritos e dirigidos por Samuel Fuller — sendo que só um não foi também produzido por ele — entre 1949 e 1951 despem os mitos que o próprio cinema vestiu. O primeiro, sua grande estreia, arrasadora, Eu Matei Jesse James, é o contraponto entre a formação do mito (o Robin Hood heroico invencível traído pelo melhor amigo, contado pelos folhetins e imprensa e cantado pelos trovadores ambulantes) e seu antídoto (a representação do crime no teatro protagonizado pelo próprio assassino, Bob Ford, o cara que assim fica marcado para morrer, pois matá-lo daria fama ao atirador). Em tese é um faroeste, mas Fuller rompe os mitos que cercam os gêneros.

O segundo, “O Barão do Arizona”, que também não pode ser enquadrado como um faroeste, apesar de todos os elementos presentes na tela, é a exposição de uma fraude e sua queda. É a oposição entre a formação de um mito — a falsa nobreza que reivindica o território de um estado inteiro por meio da falsificação de documentos seculares e a invenção de uma linhagem fictícia — e a pressão sofrida até sua derrota tanto por parte do Estado americano quanto da população lesada pela ambição do fraudador. Como um romancista que conta a saga de um falso pioneiro e se encanta por sua performance, Fuller é um autor de transgressões múltiplas que procura revelar o cruzamento entre o que é considerado verdadeiro e sua contrafação, tomando partido não por um ou outro lado, mas pelo cinema.

Em “Jesse James”, a peça de teatro reproduz fielmente a cena do próprio filme, gerando um efeito desdramático nos espectadores. “Em Arizona”, a paciente e elaborada criação da fraude mostra como a percepção alheia e as leis podem ficar à mercê das representações, dos tratados, dos documentos, das ambições. Nos dois filmes, os telegramas e os jornais servem para, em off, costurar a narrativa dramática que gira em torno de poucos personagens. Em ambos, o amor sincero entre duas pessoas é o que sobra de verdade de uma espiral de mentiras. Tudo sem nenhum sentimentalismo, pois as paixões nascem não da moral, mas da pele, das emoções, das atrações misteriosas, das vivências.

No terceiro filme, “O Capacete de Aço”, alguns mitos são despidos pelo cineasta, como o perfil da América — representada aqui pela diversidade étnica, bem ao contrário da cultura caucasiana de Hollywwood — a guerra no que ela tem de mais importante (seus bastidores, suas humanidades, os detalhes, a indiferença, o instinto de sobrevivência, a garra). Não é um filme sobre heroísmo standard, mas sobre um heroísmo possível, mais bruto, sem mistificações, sem nenhuma roupagem de gala, sujo e feio e ferido. Um assombro de filme.

Existem muitos cineastas, bons, importantes, gênios. Mas Samuel Fuller é de outra natureza. O cara é foda. Acho que isso o define. Ele é uma força da natureza que explode na tela em cenas e falas inesquecíveis (como “se você morrer eu te mato” dito pelo sargento para um prisioneiro que precisava sobreviver para ser interrogado). As brigas, os beijos, os tiros, tudo excede em Samuel Fuller. Acho que “O Capacete de Aço” é o melhor filme de guerra que vi e olha que sou veteraníssimo no gênero. O sargento manco fumador de charuto e atrapalhado, que delira no meio do tiroteio é uma figura inesquecível. O soldado que carrega o órgão herdado de um padre moribundo, o médico negro que precisa pegar na metralhadora, o soldado mudo que cuida das mulas e morre assassinado pelas costas: tudo é intenso nesta obra.

O desconhecido que chega no casebre para transformar uma órfã mestiça numa baronesa espanhola, embaixo da chuva e que no final do filme é recebido por ela, adulta e sua esposa, também sob aguaceiro, é também mais um exemplo dessas costuras magníficas da sétima arte, que Fuller domina como ninguém.

A remissão dos pecados

Cenas de documentários são a chave para dois filmes de Samuel Fuller. Em O Beijo Amargo, de 1964, a Veneza turística ilustra uma vida de dissipação que mascara o crime de pedofilia do autor das imagens. Em “Proibido”, de 1959, o pesadelo visual do Holocausto serve para esclarecer o jovem alemão que permanece atraído pelo nazismo mesmo depois da grande derrota. O cinema como ilusão e denúncia funciona assim em seus polos opostos, intensificando a complexidade de um direto no queixo. Fuller filma sem subterfúgios, mas jamais é simplista. Sua bandeira é a Justiça rigorosa convivendo com a tolerância.

No “O Beijo Amargo”, a prostituta caçadora de dotes chega na pequena cidade para dar o golpe do baú, mas acaba se redimindo de seu passado ao se envolver com crianças deficientes e ao punir o culpado pelo crime de assédio infantil. Em “Proibido”, a alemã que nega o nazismo e se casa com americano por interesse acaba se apaixonando pelo marido e ajuda o irmão a sair da garra dos terroristas que querem a volta do Fuhrer.

Não se pode condenar uma pessoa por ser prostituta ou alemã, nos diz Fuller. Samuel era filho de migrantes judeus (pai russo e mãe polonesa), e tinha Rabinovich na origem, substituído pelo sobrenome de um dos tripulantes do Mayflower, o barco fundador da América.

Qual é direto no queixo? A abertura de “Beijo Amargo” é célebre e didática: a prostituta que teve o cabelo raspado por se insurgir contra o cafetão, bate nele para recuperar o dinheiro que lhe deve. A de “Proibido” usa a “Quinta Sinfonia”, composta por um alemão eterno, para pontuar um ataque de soldados aliados a um atirador nazista. O espectador fica fisgado desde o primeiro segundo. Esse tipo de abordagem, brutal e brilhante, se repete ao longo das narrativas. A câmara não esconde as intenções das mulheres no início do golpe, mas também não esconde quando mostram sinceridade. Ao ver, o espectador se convence das boas intenções de quem pecou no início.

Qual é a complexidade? Nem todo alemão é nazista, nem toda a prostituta é suspeita. A necessidade de sobrevivência pode levar a um desfecho moral e não apenas cercar o personagem numa jaula antiética. A luta pela tolerância obrigou Fuller a sair da América, quando o macartismo venceu na caça aos considerados comunistas. Seu filme “White Dog” (1982), é sobre racistas que treinam cães para atacar negros.

A intolerância venceu e Fuller, recolhido ao exílio, foi muito homenageado na sua longa vida (1912-1997). Seu cinema, feito de nuances, apesar de extremamente objetivo, perdeu a parada, pois o que vemos hoje é a celebração da intolerância. Mas permanece como cineasta cult, que foi incensado pela equipe da Nouvelle Vague nos “Cahiers Du Cinema” nos anos 50 e 1960 e até hoje é considerado obrigatório.

Sua denúncia contra os bem-intencionados, hoje conhecidos como politicamente corretos, é brutal. O bilionário que dava presentes para os pacatos cidadãos da cidadezinha onde ele dominava, impondo-se como benemérito, era apenas um pervertido. E a mulher que oficialmente deveria ser considerada pervertida, luta para se redimir e ter uma vida decente. O soldado que poderia voltar para casa tranquilamente prefere ficar na Alemanha devastada em nome do amor por uma mulher que fazia parte do inimigo. Chega ceder à tentação de culpá-la, mas acaba se convencendo da sua remissão.

O pecado não é permanente, tem cura, pela Justiça rigorosa (aparecem as cenas do julgamento dos chefões nazistas em Nuremberg) aliada à tolerância (o beijo entre desiguais, a sintonia entre saudáveis e doentes). O que tem de proibir é a desfaçatez, o ódio e a violência, não o amor entre pessoas de nacionalidades diferentes, ou a chance de alguém mudar de vida.

Mulher é luz, homem é sombra

Continuo a viagem sobre o cineasta Samuel Fuller (1912-1997), autor de inúmeras obras-primas que encantam gerações e que rompeu todos os vícios de linguagem do cinema, criando soluções imitadíssimas até hoje. Sabe o chefe dos bandidos que fica o tempo todo na piscina? O momento dramático em que o anti-herói enfim leva um tiro e se arrasta pela avenida deserta até morrer num beco? Os jargões como “let’s get out of here” dito para amantes ou comparsas? A tela sendo ocupada inteira pelo olhar oblíquo de alguém que se esgueira? Os letreiros de impacto se superpondo às imagens para costurar a narrativa? São inúmeros os recursos usados por Fuller que se tornaram cânone.

O melhor de Fuller é pré-macartismo, antes que a direita metida a politicamente correta destruísse Hollywood para transformá-la nessa choldra inominável de releases visuais sobre os advogados, o FBI, a CIA, os mercenários fedorentos desprezíveis e os escatológicos porcos de gerações de falsos comediantes. Antes de ver seu assombroso “Underworld USA” (que é de 1961, mas é um autêntico exemplar do cinema formado antes do massacre direitista dos anos 1950) eu achava que Nick Ray tinha mandado bem com “Rebel Whithout a Cause”, de 1955. Mas só as sequências iniciais sobre delinquência juvenil colocam a juventude transviada de Ray no chinelo. Fuller não tem piedade, não perde tempo com sentimentalismo. Tudo nele é um exagero de talento e competência.

Mas o forte do filme é a aula que dá sobre como funciona a corrupção. O bandidão que fica na piscina dia e noite (como o Peréio de “Lúcio Flavio”, de Babenco, 1977) domina os negócios do Estado, paga impostos, faz caridade e explora a juventude como grande mercado para as drogas. Manda matar desafetos e informantes. Seu capanga elimina uma criança, a menina que andava de bicicleta numa rua tranquila. Ela era filha de um garganta profunda que entregava tudo sobre propinas aos policiais e por isso foi eliminada para servir de lição, já que o alcaguete estava foragido. A intercepção de documentos sigilosos é puro wikileaks, se formos usar um anacronismo.

Fuller não é sentimentaloide, mas mata a pau nas cenas de amor. “Tem mulher que chora, se desespera, morde, ameaça, mas eu não. Eu morro por dentro cada vez que você me beija”, diz a mulher (interpretada por Dolores Dorn) que também tem informações secretas sobre a máfia e está fugida e sob a guarda do arrombador de cofres (o carismático Clif Robertson). “Sabe por que ela é grande?” diz a protetora do ladrãozinho (Beatrice Kay). “Porque viu algo dentro de você que vale a pena salvar.”

A feminilidade corajosa que expõe explicitamente sua diferença e se encanta com a virilidade ética, mesmo em casos considerados perdidos, é o casal canônico de Fuller, presente também em “Pickup on South Street” (1953). As cenas de beijo são arrasadoras. Os homens avançam, as mulheres se entregam, a tela se incendeia. O homem está sempre ligado à sombra: numa cena inspirada nos comics, vê-se apenas a sombra dos assassinos em cima do pai do protagonista, gerando nele a vontade eterna de se vingar. Ele se arrasta por becos, salas escuras, ruas mal iluminadas. A mulher é a luz, a claridade, que aparece no seu caminho numa fresta. Seu rosto é um flash na escuridão. Ela chega para desviá-lo em direção à relação permanente, a solução, a saída para uma vida tão estéril.

Quem resiste a Samuel Fuller, que arrebenta com os paradigmas dos gêneros, os ultrapassa e se transforma em referência absoluta do noir, como neste “Underworld USA”, do faroeste como “Eu Matei Jesse James”? Ninguém. Sobram livros variados sobre ele por todo o canto. Amado, celebrado, analisado, Samuel Fuller é um criador que funciona como uma bomba atômica no cenário gelado da indústria do espetáculo.

Pioneiros inventam a própria lenda

Prepare-se para levar uma surra: Samuel Fuller bate no espectador sem dó, usando os próprios punhos. Brigas homéricas entre homens e mulheres, todos se engalfinham numa luta de vida e morte em nome da paixão de viver e da liberdade de escolha. Dois filmes dele nos colocam nessa roda brutal confundida por alguns com pieguice (sempre existem os aristocratas do bom gosto) e que é apenas competência cinematográfica, sinceridade e transparência de alguém que assumia sua biografia com todos os frames.

Ex-repórter policial, Fuller escreveu, produziu e dirigiu “Pickup on South Street” (1953, traduzido para “Anjo do Mal”), sobre o carismático batedor de carteiras (Richard Widmarck, arrasador) que rouba um filme contendo segredos de Estado que estava dentro da carteira de uma mulher no metrô (Jean Peters, magnífica) e seria vendido para os comunistas. Também escreveu, produziu e dirigiu em “Park Row”, de 1952, filmado em 14 dias sobre o início da imprensa americana e uma homenagem ao jornalismo, rebento de uma união entre a tradição e a ousadia. O casamento entre a imprensa bem-comportada e a marrom resulta no fruto da liberdade de informar com responsabilidade, de não aborrecer o leitor e de seduzi-lo com a arte visual e da palavra e com a informação isenta sobre os fatos.

“Park Row” é uma aula de jornalismo. Por exemplo: nunca me convenci com a máxima de que “notícia não é quando o cachorro sacode o rabo, mas quando o rabo sacode o cachorro”. Aprendi que a citação está errada, por isso não fazia sentido. O certo, dito por um veterano de redação no filme, é assim: “cachorro com lata amarrada no rabo não é notícia, só quando ele se virar e desamarrar a lata”. Isso é bem diferente do “rabo sacudindo o cachorro”. Há também a coincidência de eventos da imprensa com os históricos, como a inauguração da Estátua da Liberdade. E a ruptura de hábitos arraigados, como a inovação de colocar caricatura e charges na capa do jornal, o que era considerado um escândalo no século 19.

“Park Row” era a rua dos periódicos, onde o repórter trabalhava para o “Star”, dirigido por uma mulher (no Brasil o filme se chama “A Dama de Preto”). Ele forçou sua saída e acabou diretor de um pequeno jornal de quatro páginas, que mexeu com a concorrência, que por sua vez contra-atacou com violência. História conhecida e repetida ao longo do tempo. O encantador no filme é a gana da equipe do “Pasquim”, onde todos pagam para trabalhar em favor de um projeto que tem tudo para vencer. Fuller uma vez disse, em “Pierrot Le Fou”, de Godard, que cinema é emoção. Nada mais verdadeiro em suas obras de autor.

Ele põe garra em tudo o que faz. Os beijos são irreversíveis, contundentes, enchem a tela. O beijo que começou como assédio em “Pickup” acaba despertando o sentimento, redimindo assim o casal de criminosos. Em “Park Row”, a mulher que perseguiu seu ex-repórter se arrepende e acaba salvando o jornal do concorrente. Em “Pickup” o casal deixa o mundo das transgressões, seduzidos pela beleza do amor. A personagem Moe, inesquecível criação da genial Thelma Ritter, deixa de denunciar pessoas à polícia para salvar vidas. É a remissão dos pecados, recorrente em Samuel Fuller, um homem de princípios, mas sem falso moralismo, que abre a guarda para a chance de seus personagens darem a volta por cima escolhendo a liberdade.

A doença política da loucura

Em 1945 o cinema ainda se dava bem com a psiquiatria. Gregory Peck podia se curar de seu distúrbio, a amnésia, e com a ajuda da doutora Ingrid Bergman, lindíssima e fria, resolver um caso de assassinato em “Spellbound”, de Alfred Hitchcock. Mas nos anos 60, quando a crítica à psiquiatria atingia níveis de denúncia que iam do teatro à academia, de Peter Weiss a Foucault, o cinema também brigou com a ciência criada por Freud. É o que atesta “Psicose”, de 1960, do mesmo Hitchcock, onde o psicótico não tem cura e é de verdade o assassino de dupla personalidade; e “Marat-Sade”, filme de 1967 de Peter Brook baseado em peça de Peter Weiss, em que o marquês de Sade encena uma peça dentro do hospício sobre o assassinato do revolucionário Marat.

A loucura deixou de ser um desvio individual e passou a representar uma doença política. Quem tinha direito à recuperação eram as pessoas confiáveis, como o personagem de Peck. E não outsiders como um hoteleiro perdido no ermo traumatizado com a perda da mãe, como em “Psicose”. O divã funciona para as pessoas de bem, enquanto o resto amarga nos depósitos mentais dos hospícios. O ponto de inflexão dessa virada que destronou a psiquiatria como panaceia foi a celebrado livro de Ken Kesey, “Um Voo Rasante sobre o Ninho dos Cucos”, de 1959.

Cuco é uma ave que expulsa as outras para colocar seus ovos e criar os filhotes. Voar sobre o ninho deles é ultrapassar os limites. Ken Kesey se baseou na sua experiência de enfermeiro em num hospital psiquiátrico e Michael Douglas levou uma década e meia para conseguir produzir o filme “Um Estranho no Ninho”, de 1975, dirigido por Milos Forman. Mas antes dele o intempestivo e genial Samuel Fuller se adiantou e fez uma versão da história à sua maneira. Trata-se do brutal, radical, insuperável “Shock Corridor”, o “Corredor do Eletrochoque”, numa tradução livre, o filme mais importante do celebrado cineasta cult e que bota para correr todo esquema de punição e manipulação das mentes que a indústria da psiquiatria, alimentada pelos poderes, impõe sobre a população.

Em nenhum lugar vi que Fuller se baseou em Kesey, mas está na cara. “Corridor” é de 1963 e o livro é de 1959, lançado em 1962. O romance conta a história de um criminoso que, para se livrar da prisão, decide se internar num hospício fingindo-se de louco para passar bem. Dança, pois acaba lobotomizado. O filme de Fuller é idêntico, só que com os elementos do próprio Fuller, que entrou para trabalhar em jornal aos 12 anos e logo depois já era repórter policial. Ele coloca o personagem como um repórter (interpretado por Peter Breck), que quer desvendar um crime no hospício e pede para a amante se passar por sua irmã para denunciá-lo como incestuoso. Assim ele garante um lugar no meio das testemunhas do assassinato.

Fuller faz os atores trabalhar, não deixa ninguém sossegado. As cenas de surtos e de brigas são de arrebentar. Os cases são profundamente radicais. No livro de Kesey existem as prostitutas, o índio americano, o baixinho, o gigante, uma fauna variada de outsiders. No filme de Fuller há o negro racista (com discursos impressionantes contra a própria raça) o ex-cientista nuclear que pira e regride até a idade dos seis anos, o gigantesco obeso italiano que canta óperas, o filho de fazendeiros sulistas que tinha virado comunista por abandono ideológico dos pais e do governo e que se arrepende e tenta voltar, mas acaba também no eletrochoque. E tem as ninfomaníacas, aqui tratadas como doentes graves e agressivas.

O filme é uma espiral que envolve o protagonista até sua loucura total. Manipulado pelo diretor do hospital de sobrenome Cristo, ele se deixa arrastar pelo ambiente e, mesmo conseguindo decifrar o mistério do assassinato, não consegue mais sair da armadilha que montou para si mesmo por pura ambição, pois queria fazer uma reportagem que ganhasse o cobiçado prêmio Pullitzer. A única personagem lúcida é a namorada do repórter, interpretado por Constance Towers, que deu show em “O Beijo Amargo”. Em “Corridor” ela faz uma stripper veterana que tenta demover o amante da sua piração, mas não consegue.

A loucura, em Fuller, é uma doença política. O negro fascinado pela Ku Klux Klan representando a identificação da vítima com seus algozes, o ex-cientista regredido à infância representando a irresponsabilidade da ciência, o herdeiro sulista que vive fazendo jogos da Guerra da Secessão mostrando que o anti-patriotismo é a nação que se deixa invadir e pode não sobreviver. Todos surtam no corredor do eletrochoque, atirados ali e convencidos que são culpados da própria demência.

Em “Shock Corridor”, Samuel Fuller ocupa lugar de destaque na vanguarda cinematográfica, origem de seu exílio posterior, quando teve de emigrar para a Europa depois de mais algumas incursões do seu cinema demolidor. Foi arrastado para a televisão, onde fez coisas inomináveis de tão ruim e acabou saindo dos EUA para que os chacais dominassem a sétima arte. Jogaram fora o buldogue tenebroso fumador de charuto, que dizia mais ou menos o seguinte: “Não importa a manchete, mas o quão alto você pode anunciá-la”. Fuller berrou. Seu grito se ouve ainda hoje.