O livro agonizante e visceral de J. M. Coetzee

O livro agonizante e visceral de J. M. Coetzee

Entende-se perfeitamente por que J. M. Coetzee ganhou o Prêmio Nobel de literatura. Sua prosa é a mais límpida que se possa imaginar: frases curtas e precisas, vocabulário simples, discurso direto e gosto pelo verbo, com o frescor da conjugação no tempo presente. A consciência martela o tempo todo, mas a ação é constante como nos romances de aventura. Se é que se pode falar em escritor prático, aqui temos um, inimigo das experimentações sintático-vocabulares, que talvez chamasse de “firulas”. Vai direto ao ponto, com a vantagem adicional de saber contar uma história como poucos. Uma história, diga-se, com começo, meio e fim, em forma tradicionalíssima. É uma escolha, um estilo — o estilo de J. M. Coetzee em “Desonra”, livro que consolidou mundialmente o escritor, nascido em 1940 na África do Sul.

Coetzee é o tipo de autor que comove a gente. Mexe com nossa humanidade com essa história de sair em defesa dos bichos, absolutamente indefesos diante de nossa presunção e crueldade: “Coitada da Katy, está de luto. Ninguém quer saber dela, e ela sabe disso. O irônico é que deve ter filhotes pelo distrito inteiro, todos dispostos a repartir suas casas com ela. Só que não têm o poder de fazer o convite. Fazem parte da mobília, parte do sistema de alarme. Eles nos dão a honra de nos tratar como deuses, e nós correspondemos tratando os bichos como coisas”. Períodos de humanidade como esse inundam o livro e permitem dizer que o protagonista, David Lurie, é inspirado no próprio Coetzee, um ativista pela causa dos animais.

“Desonra” conta a história de David, 50 anos, 25 de docência, dois casamentos e dois divórcios, uma filha e três livros publicados. Carac­te­rísticas mais pronunciadas: mulherengo, promíscuo e cínico. Não é tão velho quanto quer acreditar e não reclama problemas de saúde, mesmo assim é obsediado pela velhice e a morte. Como a maioria dos escritores, David gostaria de ser imortal, mas o meio que domina para isso, seus livros, não prometem nada, porque também não fazem sucesso. E a última obra que ainda pretende lançar — “Byron na Itália” — “não está dando em nada”. Sua vida começa a degringolar a partir do momento em que se envolve com uma de suas alunas, Melanie Isaacs, de apenas 20 anos.

Desonra (1999), de J. M. Coetzee
Desonra, de J. M. Coetzee(Companhia das Letras, 248 páginas)

O caso com Melanie, negra, é apenas a antessala do romance. O livro divide-se em 24 capítulos, o primeiro dos quais refere-se a um caso furtivo do protagonista, que se deixa revelar: “Ele é plenamente a favor de vidas duplas, vidas triplas, vidas vividas em compartimentos”. Do segundo ao sexto, seu caso com a aluna é exposto, ele é descoberto e, submetido a um inquérito administrativo tendenciosamente feminista, se demite da universidade onde leciona, na Cidade do Cabo. Daí até o 24º, David foge para Salem, no interior do país, e mergulha numa situação inteiramente nova ao lado da filha Lucy: um mundo inesperado se descortina e o drama se agiganta até atingir proporções históricas: “A história percorre o distrito como uma mancha. Não é a história dela que se espalha, mas a deles: eles são os donos”. O autor trata a compaixão pelos animais — “O mundo sem dúvida seria um lugar pior sem eles” —, a disputa pela propriedade de Lucy e o estupro dela. Não parece ser o único estupro em “Desonra”, como também é diversa a maneira com que o personagem principal encara seu caso com Melanie — “comédia burguesa” — e o trauma da filha, convertido em drama universal.

Usei há pouco o termo aventura — afinal, “uma dessas pequenas aventuras que um certo tipo de homem costuma ter” —, e volto a ele para caracterizar as duas oportunidades em que David e Melanie ficam juntos. Considera-se apaixonado e tenta seduzi-la com argumentos como este, quando a convida para passar a noite juntos: “Por quê? Porque a beleza de uma mulher não é só dela. É parte do dote que ela traz ao mundo. Ela tem o dever de repartir com os outros”. Ela escapa e volta no capítulo seguinte, quando finalmente cai em suas garras: “Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado”. Tudo vai bem até que o pai da aluna descobre o que se passa e o denuncia para a universidade, onde é acusado por assédio e má conduta. O cerco feminino dentro desta comissão se fecha sobre David, tentando enquadrá-lo por discriminação baseada em gênero. Mas ele não aceita ser culpado porque o critério para o perdão não é a sinceridade, e sim a “reforma da personalidade”. Só lhe resta uma alternativa, já que não concorda com o moralismo das relações estabelecidas: demitir-se e ir embora.

Em Salem, David passa a viver com a Lucy numa propriedade rural. Solteira, Lucy divide as obrigações com um sócio, o negro Petrus. En­quanto posterga um projeto pessoal — escrever uma ópera baseada em Byron — David participa da rotina da filha, que basicamente cuida de animais e faz feira. Conhece novas pessoas, entre as quais Bev Shaw, que tem uma instituição para zelar e, quando necessário, sacrificar animais doentes. Terá com ela um caso fortuito: “Depois da carne doce e jovem de Melanie Isaacs é isto o que me resta. É com isto que tenho que me acostumar, isto e até menos que isto”. Um belo dia pai e filha são atacados em casa por três homens negros e um deles, Pollux (que se saberá parente de Petrus), estupra e engravida Lucy. A polícia não faz nada para resolver o caso e a única maneira que ela encontra para ter paz — afinal, teme novos ataques — é se submeter a Petrus, cedendo a ele a fazenda, como dote: o velho sócio propõe a David casar-se com sua filha. Contra a vontade do pai — que a essa altura já está arruinado também financeiramente — ela aceita. Desgraça — total.

O tradutor do romance, José Rubens Siqueira, optou por um título em português que merece ser discutido, “Desonra”. Parece compreensível não ter mantido o original “Desgrace”, palavra impregnada de fortes conotações religiosas no Brasil — mas será que estas escapam inteiramente a qualquer intenção do autor? Desgraça, e não apenas desonra, é exatamente o que David pretende dizer, quando procura se perdoar com os pais de Melanie: “Nos meus termos, estou sendo castigado pelo aconteceu entre mim e sua filha. Caí em estado de desgraça do qual não será fácil me levantar. Não é um castigo que eu recuse. Não reclamo dele. Ao contrário, estou vivendo o castigo dia a dia, tentando aceitar a desgraça como meu estado de ser”.

David se declara ateu, e diz que não devemos exercer a compaixão em função de prêmios futuros, mas há controvérsias nessa convicção e não temos certeza de seu ateísmo. Há outros momentos em que vacila, como este, ao tecer um comentário sobre Bev Shaw: “Para mim quem cuida do bem-estar dos animais é um pouco como um certo tipo de cristão”, e ele os cuidará e os amará. Mais adiante assume uma opinião surpreendentemente gnóstica num homem tão cético, diante de Lucy, que diz: “Não tenho certeza de que eu tenha alma. Não saberia como é uma alma se encontrasse uma na minha frente”. Ele retruca: “Não é verdade. Você é uma alma. Nós somos almas. Somos almas antes de nascer”. David lembra um anjo caído nesse mundo! De forma que o conceito de desonra cabe bem — o aspecto sexual e moral, que perpassa o livro —, mas a desgraça, com sua ressonância religiosa, fica de fora. E caberia, até porque cair em desgraça, também para nós, possui o sentido total de ruína em sentido tanto metafísico quanto material. Materialmente a desgraça de David é completa, ao ponto de ameaçar a sua linhagem. E aí retomamos o veio tumultuoso, inescapável, da história.

O romance pretende ser, acaba sendo, uma alegoria da nova África do Sul. A relação entre o intelectual e Petrus, nas tarefas da fazenda, dá bem a medida do enfoque: “Ajudar Petrus, gostei disso. Tem um tempero histórico”, mordacidade que, a seguir, emprega para falar em “reparação dos erros do passado”. E não sem reportar à nódoa do sentimento de superioridade racial, característico dos tempos coloniais: “Petrus é, de fato, quem trabalha, enquanto ele fica sentado e esquenta as mãos”. A sensação de estranhamento é tal que Coetzee sai com essa, enquanto põe David para assistir a uma peça em que Melanie atua: “Embora sejam seus conterrâneos, não podia se sentir mais estranho ao lado deles, mais impostor”, o que é reforçado pela confissão, ao reportar-se à fazenda onde moram, de que “ele não sente a terra com sua. Apesar do tempo que passou ali, dá a sensação de terra estrangeira”.

David identifica-se demais com o lado colonizador, branco e ocidental, em todos os sentidos, ao ponto de não mais se reconhecer nessa história inaudita: “Petrus é um homem de sua geração. Sem dúvida passou por muita coisa, sem dúvida deve ter uma história para contar. Ele ia gostar de ouvir a história de Petrus dia desses. Mas de preferência não reduzida ao inglês. Cada vez mais ele está convencido de que o inglês não é a língua adequada para a verdade da África do Sul”. A história da África do Sul requer uma revisão a partir da base essencial da língua, de forma que os nativos possam se reconhecer nela e ele ficar de mero espectador.

Até a forma com que David encara o estupro da filha destoa de sua relação com Melanie. Agora que ele está do outro lado da questão, enxerga o estupro como caso de violência, para não dizer barbaridade. E, mesmo assim, tem consciência de que “pode ter parecido pessoal, mas não era. Vem desde os ancestrais” e é reflexo da exploração ocidental. E por isso, em tese, David torna-se um homem em conflito com a própria moral, haja vista que Melanie também se sentiu constrangida e ele mesmo interpretou o ato com ela como comédia burguesa, feito uma “cena” de George Grosz. Ou seja: uma cena grotesca, como só podem ser os traços do pintor expressionista. Mas isso não condiz em nada com o senso de beleza, platônico, de David.

Uma breve exposição da vida intelectual de David está no primeiro capítulo: “Sua opinião, que ele não ventila, é que a origem da fala está no canto, e as origens do canto na necessidade de preencher com o som o vazio grande demais da alma humana”. A análise deste romance deve levar em conta os mestres da inspiração lírica de David Lurie, quiçá do próprio autor: Lord Byron e William Wordsworth. Como o leitor sabe, são poetas do romantismo inglês. A fonte de inspiração, no último, é o principal poema do maior dos “lake poet”, o “Prelúdio”, notadamente o “Livro 6 e em especial o verso 599”, que fala da “usurpação de uma ideia viva” por uma imagem sensorial, conciliação possível entre o possível e o impossível: “Agora, você quer mesmo ver a amada com a fria claridade do aparelho visual? Talvez seja melhor deixar um véu sobre o olhar, para conservar viva a forma arquetípica, divina, da amada”. David é um romântico, equilibrando-se entre a idealização do amor e a sensibilidade do olhar, que desmistifica qualquer beleza.

Já de Lord Byron, a fonte de inspiração utilizada é o poema “Lara”, que serve a outro propósito: identificar David com Lúcifer, isto é, com “o anjo que foi atirado para fora do céu. ‘Errante’: um ser que escolheu seu próprio caminho, que vive perigosamente, chegando mesmo a criar o perigo para si próprio”. Ele tece esse comentário dentro de sala de aula, diante de Melanie e seu namorado, que a essa altura já sabe o que aconteceu entre os dois. Espécie de mimese — como a peça que Hamlet escreve para revelar Claudio — em que o culpado é que se entrega. Byron está na base da filosofia moral de David, toda ela votada a defender os instintos e a natureza. Como tal age com o coração, motivado pelos impulsos, não conseguindo aceitar que seja de outra forma: “O cachorro aceita a justiça de uma coisa dessas: uma surra por um chinelo roído. Mas desejo é outra história. Nenhum animal aceita uma justiça que castiga porque você obedeceu a seus instintos”. Seria necessário, então, instituir um código impossível para se avaliar o seu caso, haja vista que seu caso particular “tem por base os direitos do desejo”.

Em “Desonra”, Coetzee utiliza o lirismo para refletir sobre os problemas eróticos de seus personagens. Porém, tanto quanto o gênero lírico, a noção de teatro, de representação, é muito presente e faz a ponte com um gênero distinto, na outra extremidade.

O gosto do autor pela comédia é assinalado nesse comentário sobre a última tentativa literária de David, “Byron na Itália”: “Não é o erótico que o atrai, afinal, nem o elegíaco, mas o cômico”. A própria peça em que Melanie atua na escola — ironicamente chamada de “Pôr-do-Sol no Salão Globe” — é, segundo as palavras de David, “uma comédia sobre a nova África do Sul que se passa em um salão de cabeleireiros em Hillbrow, Joannesburgo. No palco, um cabeleireiro gay, muito desmunhecado, atende dois clientes, um preto, um branco. As falas rolam entre os três: piadas, insultos. A catarse parece ser o princípio dominante: toda a grosseria dos velhos preconceitos aberta à luz do dia e levada em torrentes de gargalhada”. A piada encenada é apenas o prenúncio do que vai acontecer, de fato, na vida de David: a comédia sai do palco e se encarna na vida, sendo que o estupro de Lucy — uma lésbica — constitui uma catarse, de significação superior.

Romance que reflete a situação política pós-apartheid — ou seja, pós 1994 —, “Desonra” representa a africanização da África do Sul, após o domínio secular dos colonizadores ingleses, que se iniciou em 1806. Sintoma radical disso é a absorção gradativa da fazenda — melhor dizendo, da terra — em que moram Lucy e David por Petrus. Alguém mais deve ter reparado nesse nome rupestre, latinização de Pedro. Sua força telúrica não é casual. Não se pode evidentemente adivinhar a intenção do autor em utilizá-lo, mas o fato é que evoca a resistência mineral das pedras, e com muito acerto: a resistência do “sócio” é a de uma cultura milenar e suas práticas primitivas, como a poligamia. A traumática e melancólica entrada de Lucy para o domínio familiar de Patrus é a segunda etapa dessa absorção em curso. Sua gravidez significa, em última análise, a assimilação final do homem branco pelo homem negro, quem sabe a incorporação ritual do algoz pela vítima, graças ao concurso da miscigenação, enfim restabelecida. O tempo acaba com tudo e faz o explorador (“David”) desaparecer do mapa, definitivamente.

Então se pode dizer, apesar do intenso lirismo inicial, de Byron e de Wordsworth, e apesar da intenção jocosa de fazer rir porque esse mundo é uma comédia, que “Desonra” aspira ao épico.

J.C. Guimarães

Crítico literário.