5 melhores filmes da Netflix em 2021 Kimberley French / Netflix

5 melhores filmes da Netflix em 2021

As grandes transformações sociais começam dentro de cada homem, daí ser impossível, à luz do pensamento de gênios como o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), uma pretensa salvação da humanidade. A humanidade só se salvaria se cada um de nós se desse conta de suas faltas e se emendasse, o que, lamentavelmente, nunca vai acontecer. Cada um é responsável por sua própria redenção — ou sua própria desventura —, sendo sempre possível, evidentemente, arrepender-se, de coração, até o último segundo, tomar um caminho diferente e refazer a vida tanto como possível.

Malgrado seja um assunto sobre o qual a filosofia não tenha lá tanto interesse, a esperança perpassa grande parte do conhecimento filosófico. Em sua “Crítica da Razão Pura” (1781), o filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) baseia os fundamentos do raciocínio lógico, da inteligência, do pensamento estruturado em conjecturas acerca do que é permitido ao homem saber. A partir de então, segue Kant, traçam-se planos quanto às atitudes a serem tomadas para a reversão de um quadro catastrófico ou, em não sendo possível, o seu melhoramento. Ao cabo desse processo, tomando-se uma análise fria do resultado, surgem hipóteses quanto à resolução do problema, num espaço de tempo que se possa determinar, mesmo com alguma margem de erro. O que passa disso não é esperança, mas torcida, desejo, ilusão, delírio ou, numa abordagem transcendental, fé. 

Em 2021, a humanidade se pautou por esse sentimento metafísico, irracional em muitos casos, de que tempos melhores virão, até porque já vivemos dias mais sombrios do que supúnhamos. Negacionismo, obscurantismo e desprezo à ciência foram temas que ocuparam o centro do debate em todo o mundo ao longo do ano devido à resistência da pandemia de covid-19, cuja eclosão se dera em março de 2020, e constituiu um drama que parece estar, enfim, se aproximando de um desfecho — o que seria do gênero humano sem o sonho e a esperança? Ao lado destes, as eternas discussões, sobre limites da imprensa, corrupção, preconceito, racismo, além da vontade do homem de reparar seus erros e refazer sua história depois de uma trajetória claudicante, ou só porque a vida passa num piscar de olhos e há que se aproveitar o dia, o agora, para se empreender as mudanças que se foram acumulando na bruma dos anos.

Manifestação artística com a capacidade de se conectar aos anseios do homem da forma mais imediata — e mais persuasiva —, o cinema refletiu tudo o foi destaque em 2021, conseguindo mesmo até ser profético. Em “Não Olhe para Cima”, Adam McKay elabora um resumo com os melhores piores momentos do ano, e mesmo do início deste louco século 21. No filme, o diretor põe à mesa suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres. Os assuntos que se propõe a abordar vem à baila ora em separado, ora misturados entre si, compondo um registro tristemente fidedigno de como é se viver na terceira década do terceiro milênio — e, pelo visto, vai piorar antes de melhorar. Desdobrando-se sobre catástrofes de outra sorte, Radha Blank também apresentou um dos trabalhos mais sofisticados da indústria do cinema em 2021. “The Forty-year-old Version” traz a história de uma dramaturga que foi esgotando rápido demais sua cota de fracassos, tanto que chegara aos quarenta anos completamente infeliz. Sozinha, sem perspectivas de avanço profissional, frustrada sobretudo, Radha — que toma seu nome emprestado da diretora, num registro flagrantemente autobiográfico — é vítima de uma maravilhosa trapaça do destino e tem de fazer uma escolha salomônica, ainda que desde sempre soubesse muito bem que caminho seu coração (e seu instinto) lhe impingiam a seguir. “Não Olhe para Cima”, “The Forty-year-old Version” e outras três produções, todas lançadas em 2021 e disponíveis ao assinante da Netflix, testemunham a soberania do cinema e da arte mesmo em tempos obscuros, imprescindível justamente em quadras da História como a dos últimos doze meses. Que 2022 nos seja leve.

Ataque dos Cães, de Jane Campion

Ataque dos Cães

Gênero americano por excelência, já faz algum tempo que o faroeste vem sendo traduzido sob pontos de vista completamente inéditos. E agora, chegou a vez de Jane Campion dar sua contribuição quanto a “macular” a reputação da categoria. “Ataque dos Cães”, trabalho da diretora lançado em 2021, subverte as histórias de caubói a começar do próprio personagem central em sua narrativa. Campion escolheu para o papel mais forte de seu filme o ator Benedict Cumberbatch, decerto um profissional muito talentoso, mas sem experiência nenhuma em tipos como ao que dá vida no filme. Conhecido pela performance de indivíduos sofisticados, algo esquisitos — como o matemático britânico Alan Turing (1912-1954) de “O Jogo da Imitação” (2014), dirigido por Morten Tyldum, ou Khan Noonien Singh, o vilão de “Além da Escuridão — Star Trek” (2013), de J. J. Abrams —, a menção ao seu nome numa produção como essa soa inadequada à primeira vista, mas a história não teria a força que acaba tendo se não fosse ele.

Phil Burbank é um homem deslocado. Sujo, cabelo engordurado, roupas amarfanhadas, é essa a sua ideia do que é ser homem, incorporada ao seu modo de ser ainda em tenra idade, graças a um tal Bronco Henry, a quem nunca somos apresentados, isso pela estética. Quanto ao que realmente importa, Phil é ainda pior. O rancheiro acredita que nunca terá problemas enquanto conseguir inspirar medo e, quem sabe, ojeriza entre os companheiros de labuta, quiçá para mantê-los a distância e se preservando de sentimentos contra os quais não tem a menor chance.

O contraponto ao personagem de Cumberbatch vem sob a forma de um irmão amoroso, compassivo, que lhe suporta os achaques, não retruca quando Phil o chama de “gordão”. George, uma composição igualmente minuciosa de Jesse Plemons, prefere falar baixo, ser gentil, ouvir. Os dois protagonistas batem uma bola redonda ao longo dos quase 130 minutos de filme, um servindo de escada ao outro, como o Gordo e o Magro sem o glacê cômico. Durante uma diligência em que se deslocam para vender os artigos que o rancho produz, param para comer no restaurante de Rose, vivida por Kirsten Dunst, e então se desenrola a sequência mais cenicamente rica de “Ataque dos Cães”. Phil nota as rosas de papel que adornam as mesas e supõe que tenham sido confeccionadas por uma mulher delicada como uma daquelas rosas, talvez uma tentativa de flerte com Rose. Mas ele não entende desse riscado; os enfeites haviam sido feitos por Peter, de Kodi Smit-McPhee, filho único da viúva que comanda o estabelecimento. Um sujeito como esse nunca pediria desculpas — uma sacada brilhante de Campion —, muito menos por apenas manifestar seu estranhamento a uma situação estranha pela própria natureza. Ao contrário: Phil dobra a aposta e se segue um festival de grosserias e preconceito, tão aviltante que Rose acaba caindo num pranto descontrolado. Depois que todos se retiram, até Phil — não sem antes resistir um tanto —, George se desculpa pelo irmão. O personagem de Plemons passa a fazer visitas cada vez mais frequentes a Rose e os dois se apaixonam. Algum tempo mais tarde, os dois se casam e os quatro, Rose e Peter, Phil e George, começam a viver sob o mesmo teto.

A essa altura dos acontecimentos, já resta claro no filme, uma adaptação de Jane Campion para a novela “The Power of the Dog” (1967), de Thomas Savage (1915-2003), nunca editada em português, o componente homossexual em Phil. Seu pouco tato com as pessoas decorre do fato de ter perdido Bronco Henry, o amigo por quem se apaixonara, e nunca ter sido capaz de digerir essa grande tristeza. É justamente Peter quem consegue identificar o problema e, a partir desse instante, o garoto enxerga em Phil o que Bronco Henry fora para esse seu contraparente a contragosto. Phil, por seu turno, também vai tendo o coração um pouco mais amolengado, se compadecendo do rapaz, querendo ensinar-lhe coisas. Inversamente ao que se tem em “O Piano” (1993), outra grande passagem do cinema em que o talento de Campion também se impõe, o envolvimento romântico entre Phil e Peter fica apenas subentendido, o que, por óbvio, se justifica em se considerando o contexto em que a subtrama toma corpo. Assim mesmo, o caso dos dois rouba as atenções, em especial por causa da forma como Rose se comporta frente à atração magnética de um pelo outro. A natureza perversa de Phil se manifesta mesmo quando a vida parece lhe dar boas razões para se emendar. Se antes o rancheiro via a presença feminina de Rose na casa em que morava sozinho com o irmão à luz de uma ameaça que precisava combater, agora o perigo é ele próprio, de forma que seu interesse sincero por Peter soa como uma vingança, detalhadamente estudada. Vilão tornado anti-herói, o caráter dúbio do personagem de Benedict Cumberbatch é a cobra que ele nietzschianamente fez de questão de agasalhar em seu peito, e que agora está prestes a envenená-lo.

Homem talhado para lidar com gado e cavalo, “Ataque dos Cães” realça o desajuste social de Phil que, claro, respinga em Peter. Ao fazer o desejo se valer da subjugação para poder maturar, o filme é uma das coisas mais intelectualmente perturbadoras já feitas em cinema. Só é uma grande pena que Jane Campion seja uma das diretoras mais bissextas da indústria.

Não Olhe para Cima, de Adam McKay

O fim está próximo e ele vem do alto. Por trás de grandes sucessos do cinema, todos dotados de algum grau de cinismo e descrédito na humanidade, em “Não Olhe para Cima” Adam McKay apresenta a sua versão para o maior medo da humanidade — e grande alívio para alguns —: a iminência da morte.

Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de seu filme suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não.

A história tem todos os clichês de um filme-catástrofe, protagonizado por um cometa prestes a reduzir a Terra a escombros numa colisão estimada para dali a seis meses e 14 dias. Esse corpo celeste desgarrado de uma galáxia vizinha fora revelado graças à descoberta de Randall Mindy, astrônomo da Universidade do Michigan, auxiliado por sua assistente, Kate Dibiasky, convocados a dar explicações detalhadas sobre o pode estar por vir — como se precisasse — à Casa Branca. Os personagens de Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence saem em disparada para o encontro com Janie Orlean, a abilolada presidente dos Estados Unidos vivida por Meryl Streep, convictos de que a mandatária maior da República está de fato apavorada e quer fazer alguma coisa a fim de minimizar os estragos, como se fosse possível. O cenário nonsense a que são aprisionados parece mesmo um prenúncio do apocalipse: Orlean leva sete horas para aparecer, absorta que estava nas discussões em torno do nome indicado por ela para a Suprema Corte, que pode acabar rejeitado em função das muitas tramoias, pretéritas e atuais do candidato. Tudo pateticamente similar ao que toma os palcos de um certo país ao sul do continente de tempos em tempos.

A partir de então, o componente de glosa política recrudesce, com uma Casa Branca cada vez mais imersa numa narrativa burlesca, farsesca, mas ao mesmo tempo lastimavelmente verossímil, personificada numa governante obcecada pelas eleições legislativas que não tardam, fundamentais quanto a lhe apontar se sua permanência à frente do Executivo federal será viável ou se terá de pensar em alternativas caso o navio faça água. O cometa pode até ter lá sua relevância, claro, mas seu instinto de sobrevivência fala mais alto. Sobrevivência política, bem entendido. O diretor açula o público ao insinuar que, no fundo, a natureza humana está muito mais para Janie Orlean do que para Randall Mindy, muito mais afetada (e tocada) com os escândalos políticos que com possíveis hecatombes que podem acabar não passando de mero delírio, quiçá a esperança suicida e assassina de um bando de fanáticos, ou melhor, de um fanático e uma fanática, que não têm na vida aspiração qualquer além de, como os romanos no poema do alexandrino Konstantinos Kaváfis (1863-1933), escrito em 1904, esperar pelo fim. O título, “À Espera dos Bárbaros”, não por acaso foi aproveitado pelo escritor sul-africano J.M. Coetzee em seu romance, publicado em 1980, que por seu turno vira filme pelas mãos do diretor colombiano Ciro Guerra, em 2019. O mundo é uma aldeia.

Mindy e Dibiasky são cavaleiros do Apocalipse cônscios de sua função, mas sua tarefa é uma pedreira, dificultada ainda mais por jornalistas que espetacularizam tudo. Em “Não Olhe para Cima”, essas figuras estão muito bem representadas por Jack Bremmer e Brie Evantee, os âncoras que tornam o roteiro ainda mais saborosamente vesano. A essa altura, alguém já pode ter se perdido no universo de criatividade indomável de McKay, repleto de estrelas, palmas para Francine Maisler, a diretora de elenco — ou pode apenas estar hipnotizado pelo penteado de Lawrence, decerto um dos mais feios da história do cinema, outra prova de amor ao seu ofício —, mas o filme tem passagens lapidares. A entrevista que os cientistas concedem aos personagens de Tyler Perry e Cate Blanchett certamente é um dos pontos altos da trama; sutil em toda a sua algazarra, a sequência revigora a tensa discussão sobre limites da imprensa, desprezo à ciência, obscurantismo intelectual, negacionismo. A pantomima circense levada por Bremmer e Evantee gera a histeria de Dibiasky, que grita em cadeia nacional que estão todos condenados, e tem de arcar com todos os muitos ônus de sua coragem impulsiva. A distopia é real.

O trabalho da equipe de computação gráfica, deslumbrante, já no desfecho de “Não Olhe para Cima” acena com certa dose de conforto espiritual num tempo em que políticos demagogos acabam experimentando a fúria de criaturas à primeira vista adoráveis, mas que como eles, sabem esconder suas verdadeiras intenções direitinho. Não é uma solução, mas o cinema existe muito mais para iludir o homem que para alentá-lo. Não olhe para baixo.

Imperdoável, de Nora Fingscheidt

Imperdoável (2021), Nora Fingscheidt

Baseado numa série de tevê e com Sandra Bullock liderando o elenco, “Imperdoável” é um emaranhado de histórias, uma mais triste que a outra, todas conduzindo a um mesmo caminho, guiadas pela mesma personagem.

Lançado em 10 de dezembro de 2021, o filme da diretora alemã Nora Fingscheidt começa mesclando imagens de flashback com registros atuais, em que se denota a batalha de uma mulher por recobrar sua própria vida. Ruth Slater, a protagonista vivida por Bullock, ganha a liberdade condicional depois de ter cumprido vinte anos de cadeia pelo assassinato do xerife, que invade a casa em que vive sozinha com a irmã Katherine, a Kate, de Aisling Franciosi, trinta anos mais nova, depois que o pai das duas, interpretado por Aaron Pearl, cometeu suicídio. O policial tinha uma ordem de despejo contra Ruth e Kate, por falta de pagamento das prestações do imóvel.

O filme toma o aspecto de saga ao acompanhar como se desenrola a história de Ruth fora da cadeia. Se a vida no cárcere não era exatamente fácil, em liberdade a personagem central de “Imperdoável” tem de arrostar novos desafios. O primeiro é se manter longe de encrenca, mesmo vivendo num pardieiro que aluga vagas para ex-detentas. Seu novo lar consiste num cubículo, que divide com outras três mulheres, além de um banheiro, compartilhado com todas as demais moradoras, cabendo-lhe dez minutos diários para tomar banho. Todas parecem saber o que fez, por mais que ela se feche em si mesma, como uma concha no fundo de um oceano de mágoas.

A roda do destino faz com que a vida dos homens rode, rode e muitas vezes acabe parando no mesmo lugar. Apesar das admoestações de Vincent Cross, o agente designado para supervisionar seu desempenho durante a soltura vivido por Rob Morgan, para que não mantivesse contato com pessoas de alguma maneira envolvidas no crime que cometera, há alguma coisa que impele Ruth para a desgraça que se abatera sobre sua vida duas décadas atrás. Ela acaba fazendo uma visita à casa em que morara com Kate, hoje habitada por Liz e John Ingram, papéis de Viola Davis e Vincent D’Onofrio. O mundo para a ex-presidiária se tornara um lugar do qual não consegue se sentir parte, exceção talvez àquela propriedade perdida no meio da zona rural de Seattle, no noroeste dos Estados Unidos. Ruth se despenca até lá e passa algum tempo, talvez horas, admirando aquele pedaço de um paraíso que se perdeu para sempre. Até ser notada por Liz, que pede ao marido para ver se descobre quem é a intrusa.

Os jornais já não se referem ao lugar como “a casa do homicídio”, e ninguém ali faz a menor ideia de quem seja Ruth Slater. Quando ela diz que passara boa parte de sua história no imóvel, Ingram a convida a entrar. É impossível fazer qualquer conjectura sobre o passado nada honroso de Ruth só por avaliar seu aspecto — por mais maltrapilha e desgrenhada que esteja —, mas John, advogado experiente, nota que a personagem de Bullock encerra um mistério. É justamente o tirocínio dele que os une, na medida em que o marido de Liz se comove com a desdita de Ruth e se propõe a ajudá-la. E é aí que “Imperdoável” decola.

O conflito entre Ruth e Liz, que a quer bem longe de sua casa e de sua família, é só uma pequena parte de todo o preconceito de que a protagonista é forçada a se desviar todo santo dia. Ruth está empenhada em mudar de vida — já manifestava esse desejo ainda na prisão, quando fez um curso profissionalizante de carpintaria, que lhe garante emprego numa obra assistencial. Não bastasse esse trabalho durante o dia, dá expediente destrinchando e embalando peixe num frigorífico, indicada por Cross, ao passo que tenta uma chance de rever a irmã, com a mediação de Ingram. Mas a vida para ela é madrasta, e parece que quanto mais se esforça para escapar do precipício, mais lhe falta o chão.

Fingscheidt e os roteiristas Peter Craig, Hillary Seitz e Courtenay Miles deixam para revelar na hora precisa, nem cedo nem tarde demais, o motivo por que Ruth deseja tanto esse reencontro. As sequências com trechos do passado da protagonista, em que detalhes do crime acabam por se esclarecer, vêm sob a forma de flashes instantâneos, que vão sugerindo uma maneira absolutamente nova de se supor em que circunstâncias o xerife fora assassinado. Tudo da maneira mais elegante que um filme com essa carga dramática consegue, o que, por sinal, o leva a um desfecho de todo inesperado, ainda que feliz. Até porque, como eu havia dito no princípio deste artigo, “Imperdoável” é um arrazoado de várias tramas paralelas que terminam por se encontrar em alguma esquina do infinito.

Sair vivinha da Silva depois do tiroteio dramatúrgico que é “Imperdoável” pode ser o passaporte de Sandra Bullock rumo a mais um Oscar. E esse é bem o gênero de filme que acaba dobrando a Academia, digam os críticos o que quiserem.

Identidade, de Rebecca Hall

Identidade (2021), Rebecca Hall

Citando o Harlem de 1929, o bairro negro por excelência da maior metrópole americana, num tempo em que ser negro não era nada bonito, “Identidade” remete a uma época de ouro do cinema — e de trevas para os Estados Unidos. O argumento central do filme de Rebecca Hall parece simples: Irene, interpretada por Tessa Thompson, e Clare, vivida por Ruth Negga, voltam a se encontrar, depois de anos sem se ver. À medida que retomam o contato, as duas partilham suas apreensões uma com a outra, ambas ansiando por exorcizar fantasmas que teimam em atormentá-las.

Irene e Clare são mulheres negras de pele clara, ou seja, esteticamente brancas — mas só sob a perspectiva visual mesmo. A ideia de que alguém cuja aparência de branco possa ser, na verdade, classificado como negro é um tanto confusa no Brasil, o que se explica por seu passado escravagista, que sacramentou o negro como um indivíduo de segunda classe, mas não só por isso. Nos Estados Unidos, a abordagem do tema do ponto de vista genético, que prega que alguém que tenha uma gota de sangue negro correndo nas veias é, por conseguinte, negro, acabaram, ainda que soe paradoxal, estimulando a luta de cidadãos não-brancos por seus direitos.

A população outrora chamada de cor nos Estados Unidos tem sofrido toda a sorte de preconceitos desde muito antes de 1929, quando se passa a trama, baseada no livro homônimo da escritora chicaguense Nella Larsen (1891-1964), que se radicou em Nova York. Mais de sessenta anos depois da aprovação da 13ª Emenda, em 6 de dezembro de 1865, justamente nos estertores da Guerra Civil Americana, em que o Sul escravagista e o Norte, a favor da abolição, se enfrentaram, a América ainda sofria com a segregação racial entre negros e brancos, e 40 anos depois, continuava a padecer desse mal, uma vez que negros encheram as ruas do pais clamando por igualdade, um pleito que, lamentavelmente, culminou no assassinato covarde do reverendo Martin Luther King (1929-1968), líder que pregava uma reação pacífica frente ao racismo, institucional, estrutural ou só ignorante mesmo. Em 2021, quase um século depois da publicação de “Identidade”, a questão racial ainda assombra a população americana, sob a forma de ataques de ódio de policiais caucasianos contra afro-americanos pobres, que mesmo pontuais, denotam, primeiramente, o despreparo das forças de segurança, e o preconceito velado que se cristalizou em determinadas esferas da sociedade ianque.

As protagonistas do longa, uma magnífica estreia de Hall como diretora, são antagônicas, mas se complementam. Apesar de alva, Irene, numa acepção do racismo internalizado de que é vítima, conhece o seu lugar e não abusa, não quer encrenca. Clare — uma brincadeira semântica de Larsen — parece muito satisfeita com seu cabelo platinado, que a fotografia em preto-e-branco do filme faz toda a questão de enaltecer, e foi adquirindo ao longo da vida um refinamento impensável a muitas moças brancas, e impossível a todas as negras (talvez tenha faltado uma providencial rinoplastia, a fim de deixar seu nariz tão fino quanto o de uma genuína princesa escandinava, papel que emula para sua vida, a despeito da cirurgia plástica estar ainda em seus primórdios nos anos 1920. Ironicamente, o Brasil, para onde, por sua vez, Irene e o marido, Brian, querem se mudar para fugir da discriminação racial [se eles soubessem…], transformou-se em campeão mundial na modalidade). Tanto empenho lhe garante o casamento com John, um homem de ascendência nórdica — da mesma forma como agiu a mãe da romancista, cujo segundo marido, Peter, o padrasto de quem toma o sobrenome por empréstimo, era dinamarquês —, que não desconfia da verdadeira origem de Clare, assim lhe parece. A esse propósito, ainda na primeira metade do enredo, quando as duas mulheres começam a se tornar próximas outra vez, Clare insinua que John pode, sim, ter suspeitado de sua “vergonha”, mas por orgulho viril, não dera o braço a torcer. Premissa que, se vai ver, não se sustenta.

“Identidade” é, sem trocadilhos, um projeto de identificação para Rebecca Hall. A diretora confidenciou que seu interesse pela obra de Larsen nascera da descoberta de que ela própria tinha um avô negro que renegara seu passado. A elaboração do roteiro foi terapêutica quanto a ajudá-la a digerir um dos opróbrios escondidos que toda família tem, o que dá à produção a aura de autobiografia, de um diário íntimo que se volta a abastecer, e à medida que Hall supera o incômodo inicial com os esqueletos ocultos em seu armário, se revela uma realizadora corajosa, cujo destemor a leva a entregar um filme esteticamente irretocável, e a delicadeza da narrativa se retroalimenta dessa beleza, compondo um trabalho como poucos na história recente do cinema. Pode ter se tornado uma espécie de protocolo a ausência de cores quando da apropriação de temas sensíveis, até doídos, como fez Alfonso Cuáron com a doçura que lhe é peculiar em “Roma” (2018), mas o resultado compensa qualquer ranzinzice intelectual. Thompson e Negga apresentam desempenho acima da média, exibindo na tela a química que cria em torno da história todo o merecido burburinho que já experimenta, inclusive acerca de possíveis Oscars em 2022.

A trilha sonora de Devonté Hynes a um piano executado com destreza exalta o quanto há de Clare em Irene e vice-versa, duas figuras quebradiças, maltratadas pelo tempo em que viveram, cada qual de modo específico, que acabam se partindo, uma delas prematuramente, e para sempre. “Identidade” é o registro mais perfeito de uma era que já deveria estar morta. Todo o cuidado é sempre pouco.

The Forty-year-old Version, Radha Blank

The Forty-year-old Version

A vida é uma sucessão de desafios, uma saga rumo ao desconhecido, uma eterna luta contra o relógio, em que ter muitos talentos significa não ter nenhum. Há quem perca um tempo precioso querendo agradar o maior número de pessoas possível, pensando que assim pode, quem sabe, agradar a si mesmo. Essa falha elementar vem sendo cometida reiteradas vezes ao longo da história, sempre por alguma razão psicologicamente complexa.

Como quase todo mundo, Radha Blank passara boa parte da vida seguindo os conselhos bem-intencionados de parentes, amigos, namorados, gente muito interessada no seu bem, até que cansou de tanto altruísmo à sua volta. Como sua personagem em “The Forty-year-old Version”, algo como “a versão dos quarenta”, em tradução literal, Radha aproveita a chegada à meia-idade para se libertar de alguns grilhões a que ela mesma se acorrentou. Rodado em 2020, o filme, confidência autobiográfica de uma mulher à procura do tempo perdido, já não mais em flor, mas com muito pela frente, é notável pela coragem da protagonista em arrostar fantasmas de tantos anos, mas que ainda estavam perigosamente à solta — e iriam permanecer assim, não fosse essa vontade incontornável de tirar os esqueletos do armário de uma vez por todas.

“The Forty-year-old Version” é tão confessional que Radha continua a ser Radha. Na pele de uma dramaturga que foi fracassando ao longo dos anos, mencionada numa lista das trinta pessoas que poderiam chegar lá antes dos trinta anos, ela hoje está a três meses dos quarenta, dando aulas para uma dezena de alunos pobres do ensino médio no Harlem, um subdistrito de Manhattan antes degradado, mas que agora conta com investimentos maciços do mercado imobiliário numa Nova York que descobre a maravilha da gentrificação. Sua carreira está completamente estagnada, ela sofre um bloqueio criativo crônico — na verdade, ela sequer se preocupa em tentar escrever, desde que sobreviva —, mas não chega a ser desgraçadamente infeliz. À exceção de Elaine (Imani Lewis), sua turma lhe quer bem e ela acredita verdadeiramente que pode fazer a diferença na vida daqueles tipos meio marginais, que puderam, como ela algum dia, contar com um porto seguro. É só por isso que continua, incentivando-os a expressar seus sentimentos em peças improvisadas, ainda que quase sempre o enredo resvale para o sexo. Nesses momentos, Radha Blank, a quase unanimidade Profe B, se dá conta de sua miséria.

A ausência de cores predomina na fotografia de Eric Branco, que pontua a narrativa de amarelo, azul, lilás e rosa nos momentos em que Radha se refere ao texto que finalmente começa a desenvolver, cut-ins impressionistas que fazem a trama ainda mais saborosa. A peça, “Harlem Ave.”, se desdobra sobre a revitalização do Harlem, subitamente ocupado por jovens brancos de classe média alta, que por seu turno têm de aprender a conviver com uma realidade que ignoraram por toda a vida, conscientemente ou não. Outra inovação semântica é a inclusão de depoimentos de personagens que encarnam a alma das ruas do Harlem — a septuagenária alegre, o tintureiro asiático, a balconista latina e dois alunos negros de Radha —, dando opiniões reveladoras sobre a mulher de quarenta anos.

Archie, o sul-coreano gay que agencia a protagonista, se desdobra para que Radha volte ao mainstream com tudo, o que é perfeitamente possível, desde que ela faça algumas concessões. O personagem de Peter Y. Kim, seu melhor amigo desde a escola, tenta convencê-la a se submeter às vontades de Josh Whitman (atenção para o trocadilho), vivido pelo astro da Broadway Reed Birney. Patologicamente vaidoso, afetado, cínico e capaz de farejar sucessos a léguas, Whitman se dispõe a produzir a “Harlem Ave.”, contanto que Radha suavize na abordagem conflituosa da questão racial, dando a uma personagem branca o mesmo destaque do recebido pelo casal de protagonistas negros. A reação de Radha não é muito diplomática, mas desencadeia nela a vontade de, pela primeira vez, se dedicar a uma atividade puramente intuitiva: fazer rap. A descoberta de D, o DJ interpretado por Oswin Benjamin com quem passa a dividir boa parte de sua vida — e de “The Forty-year-old Version” —, faz com que Radha experimente o tal renascimento aos quarenta de que sua vizinha, a senhora de setenta e muitos anos, e meio mundo tanto falam, tendo ainda direito a uma surpresa sobre a qual já não pensava há algum tempo, mas que, essa, sim, lhe lança de volta à adolescência.

Pleno de um humor sardônico, surpreendentemente revigorante, “The Forty-year-old Version” é de longe o melhor filme para uma faixa etária até há muito pouco desprezada pelo cinema, ou por já não contar com toda a graça de rapazes e moças de (no máximo) 25 anos, mas tampouco poder se afirmar no fim da história. Quarentões e quarentonas, ou quase, temos muito a dizer, por mais que excelentes outras histórias pipoquem por aí. Clichês são sempre hediondos, mas o que reza que a vida (re)começa aos quarenta é acintosamente verdadeiro. Eu que o diga.