O filme da Netflix que vai fazer seu coração sair pela boca

O filme da Netflix que vai fazer seu coração sair pela boca

Atribuam-se a “Céu Vermelho-Sangue” (2021) todos os defeitos, mas uma qualidade há que se reconhecer no filme de Peter Thorwarth: a ousadia. Espécie de híbrido de produções a exemplo de “Hellraiser — Renascido do Inferno” (1987), dirigido por Clive Barker, transposto para um cenário e circunstâncias mais afins a “Voo United 93” (2006), de Paul Greengrass, o longa bagunça muito do que se estabeleceu como terror, mantendo aberta a senda desbravada pelo sul-coreano Yeon Sang-ho em “Invasão Zumbi” (2016). A exploração do arco dramático que insinua a relação algo frágil e muito misteriosa de uma mãe e seu filho revela-se um mergulho corajoso nas águas profundas e negras da condição humana, valendo-se do sobrenatural. O espectador logo fica sabendo que o avião em que Nadja, vivida por Peri Baumeister, viaja com o filho, Elias, de Carl Anton Koch, fora sequestrado por uma facção fundamentalista islâmica que quer matar todos os passageiros em nome da causa que dizem defender. Tudo poderia correr muito bem — para os terroristas, claro —, se não fosse por um detalhe que a delicada figura de Nadja é capaz de esconder perfeitamente.

Tomando o argumento da mãe solteira que se vira para criar seu filho, depois de ter dado azo à rotina inconsequente que tivera de abandonar, Thorwarth começa a descortinar o mistério por trás da personagem de Baumeister. Ao que parece, numa das noitadas, a protagonista fora surpreendida com o ataque de um ser maligno e agora é obrigada a tomar um coquetel de medicamentos a fim de manter sob controle sua enfermidade, o que ela faz com toda a disciplina. Mas droga nenhuma tem o poder de mitigar a tensão do rapto, libertando a fera que Nadja conseguira aprisionar e esconder até então, inclusive de Elias.

O pulo do gato em “Céu Vermelho-Sangue” é entrar na brincadeira e admitir que a personagem central de um terror desabridamente nonsense é quem permite ao filme levantar voo. A história só passa a fazer sentido no momento em que Nadja rasga seus disfarces morais e torna-se quem de fato é: uma vampira sanguinária, que não poupa esforços quanto a resguardar sua prole, malgrado revelar ao filho sua natureza de monstro seja a grande ignomínia com a qual terá de lidar se saírem vivos. Conforme embica rumo ao fantástico, a narrativa cresce, encontrando seu ponto de ignição ao apresentar a perspectiva de Elias. Ao contrário do que Nadja supunha, o garoto lida muito bem com essa peça do destino, discernindo com uma maturidade rara para a idade — isso é cinema, lembre-se, e cinema assumidamente despretensioso —, quem são os vilões de fato. É nítida a afinidade de Baumeister e Koch e a ligação entre Elias e Nadja — que verdadeiramente segura uma trama que se estende um pouco além do razoável, plena de embates físicos num ambiente incomodamente limitado, claustrofóbico mesmo, contando com um exército de figurantes histéricos em muitas sequências penumbrosas — chega a ser tocante. À medida que a história toma corpo, Farid, de Kais Setti, se aproxima dos dois, e se vai selar entre os três personagens uma relação tão sólida que nem eles mesmos poderiam imaginar.

Thorwarth sabe o seu tamanho e o de seu filme e não cai na armadilha fácil (e perigosa) de se aprofundar no componente político de “Céu Vermelho-Sangue”, deixando polêmicas acerca da deturpação real do islamismo, covardemente usado a fim de justificar toda sorte de barbáries em nome de Deus, para quem entende, como Greengrass, preferindo, acertadamente, se concentrar nos aspectos do funesto, seu lado Hellraiser — e é literalmente assombrosa a semelhança, proposital ou não, entre Nadja e Pinhead, a criatura sobre-humana que protagoniza o filme de Clive Barker. Poderia mesmo se dizer que desceram da mesma barca do inferno, com a sensível diferença de que a protagonista da produção de 2021 se mostra arrependida dos caminhos tortuosos de outrora, não se furta aos imperativos nietzschianos, mas também se determinara a retomar sua vida, não do ponto em que ela ainda era uma mulher como qualquer outra — porque isso se tornara impossível —, mas tendo clara a evidência de que os prazeres mundanos sempre são fugazes, por mais atraentes que pareçam. Nadja e Elias acabam por se separar, mas o garoto, enfim, aterrissa em solo estável, amparado por Farid, que cumpre uma promessa que fizera à mãe dele.

A história surpreende justamente na última sequência, aludindo a uma nuance pós-apocalíptica que ficara todo o tempo na superfície, ordeiramente, mas se revela um bom gancho a fim de se compreender o leitmotiv do filme, sem dúvida bem sacado. O fato do personagem de Koch terminar sem a mãe, dependendo da generosidade de um estranho que despertara nas autoridades que supervisionavam o voo desconfianças injustificadas, é um grande momento do cinema recente. Sem querer, “Céu Vermelho-Aangue” voa mais alto até do que desejaria.