O trabalho irretocável de um casal de atores — os dois transcendendo o resto dos mortais, ainda que ela tenha desfrutado de mais reconhecimento — é capaz de transformar uma lembrança essencialmente mórbida num autêntico caso de amor, por mais desencontrado que pareça? Essa é a pergunta apresentada por Tom Hooper e respondida com garbo por Eddie Redmayne e Alicia Vikander em “A Garota Dinamarquesa”.
O filme de Hooper, lançado em 2015, registra a vida em comum de Einar e Gerda Wegener, pintores na Copenhague dos anos 1920, ele mais valorizado que a mulher, que conseguem manter a disputa de egos sob controle graças ao inestimável amor que têm um pelo outro. Numa tentativa quase desesperada de dar à carreira o rumo que talvez a faça deslanchar como a de Einar, Gerda convence o marido a posar como seu modelo, mas encarnando uma persona feminina. Num primeiro momento, ele aceita apenas vestir meias finas e calçar sapatos de mulher, a fim de dar à retratista a perspectiva de que necessita para se inspirar e concluir uma tela, mas à medida que Gerda avança em seu plano, oferecendo a Einar o vestido que faria a composição ser perfeita, o pintor se dá conta de que um lado antes obscuro de sua personalidade acaba de ver a luz.
O talento espantosamente incomum de Eddie Redmayne — já posto à prova com sucesso em “A Teoria de Tudo” (2014), de James Marsh, com o qual venceu o Oscar de Melhor Ator pela interpretação mediúnica do físico britânico Stephen Hawking (1942-2018) — é o que faz a magia de “A Garota Dinamarquesa” acontecer. Redmayne fora indicado a mais um prêmio da Academia de Hollywood, mas ao contrário de Vikander, agraciada com a estatueta de Melhor Atriz Coadjuvante (e que igualmente rouba a cena em “Ex_Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland), não levou, o que, definitivamente, não serve de consolo. O ator é capaz de imprimir a Einar toda a sutileza de que um papel tão denso necessita e merece. Passagens como a que mostram o pintor experimentando as meias de seda e os sapatos de salto pela primeira vez e tendo uma espécie de iluminação, de revelação instantes depois, são como os muitos trechos do filme de James Marsh um deleite para os olhos do público, em que Redmayne parece outra vez como que tomado pelo personagem. O ator, valendo-se do esmerado roteiro de Lucinda Coxon, por sua vez baseado na biografia de David Ebershoff sobre Einar Wegener, vai desvelando o oculto no protagonista, como quando Gerda menciona o vestido, e ele diz que não o vai vestir, ainda que tal ideia nunca tivesse passado pela cabeça da retratista. A partir desse ponto, se desenrola entre os dois um jogo erótico que tem para o personagem de Redmayne uma importância que Gerda ainda não pode compreender.
Como “A Garota Dinamarquesa” é um filme de arte, o argumento da transexualidade de Einar, a quem se refere o título, emerge sob a forma dessa brincadeira algo inconsequente em que o pintor vai se descobrindo testando até onde pode ir. Na sequência em Gerda e Einar, travestido como Lili, seu duplo feminino, comparecem a um baile de máscaras, aquele novo mundo, de fato, se lhe escancara as portas. Além de observar as mulheres — o que já fazia, a fim de copiar a delicadeza do cruzamento das pernas, a elegância do volteio das mãos, a sobriedade do meneio da cabeça —, Lili torna-se alvo da cobiça dos rapazes. Ao ser interpelada diretamente por um deles, o poeta Henrik Sander, vivido por Ben Whishaw, entrega-se à sua verdadeira natureza, evento de tal modo impetuoso que lhe provoca uma hemorragia nasal, alusão à menarca, a primeira menstruação da mulher. Lili existia, enfim.
Ao assumir sua real essência, a de um indivíduo que a ciência hoje denomina como uma mulher transexual, um homem que não se adequa à sua condição biológica, Lili transforma a própria vida e da companheira que, impressionantemente resignada — apesar de atônita por saber que, cedo ou tarde, vai perder o grande amor de sua vida — retribui todo o apoio que Einar sempre lhe devotara e aceita que o marido assuma publicamente a nova identidade. Quando ele, enfim, decide se submeter a uma polêmica — e arriscada — cirurgia de redesignação de gênero no hospital em que clínica o doutor Warnekros, personagem de Sebastian Koch, na Alemanha, Gerda o acompanha, já contando com o interesse amoroso de Hans Axgil, de Matthias Schoenaerts. Na primeira etapa da intervenção tudo corre bem, mas o fim de Lili não é feliz, uma vez que os procedimentos correlatos à operação a que se submete eram bastante rudimentares, mesmo passados mais de cinco anos.
O reencontro de Tom Hooper e Eddie Redmayne, já convertido em talismã do diretor desde o sucesso estrepitoso de “Les Misérables” (2012), fora a ocasião perfeita a fim de manter a oxigenação da carreira de ambos: Redmayne corroborara seu empenho discreto em se provar capaz de superar outro desafio como em “A Teoria de Tudo” e ser tido, com toda a justiça, como um dos melhores atores de sua geração, e Hooper partira para um tour de force tanto mais difícil e que lhe exigiu muito mais de suas conhecidas mandracas que deixa-nos a todos vidrados. A única lástima em “A Garota Dinamarquesa” foi Eddie Redmayne, a exemplo de Linda Hunt, William Hurt, Gwyneth Paltrow e Hilary Swank não ter faturado mais um homenzinho dourado por interpretar um personagem de gênero fluido, como os colegas. Mas ele ainda dispõe de todo o tempo do mundo.