Um filme magnífico e hipnotizante acaba de estrear na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Um filme magnífico e hipnotizante acaba de estrear na Netflix

A primeira cena de “Rocketman” (2019) tem a força de uma revelação — e essa decerto foi mesmo a vontade de Dexter Fletcher. O diretor do filme, um musical livremente (e bota “livremente” nisso!) inspirado na vida de Elton John, inclusive quando ele era apenas Reginald Kenneth Dwight, um garoto rechonchudo de Pinner, subúrbio da região metropolitana de Londres, se propõe a falar da vida e da obra de seu personagem, claro, mas do seu jeito. E não se contenta só com isso.

Muito bem iluminada, a sequência inicial da biografia fantasiada de um dos artistas mais prolíficos e longevos da história da música apresenta John, uma performance notável de Taron Egerton, vestido numa malha laranja cravejada de lantejoulas, adornada por asas e um par de chifres, atravessando resoluto um corredor. Depois de uma caminhada que sugere o deslocamento para um lugar alheio ao plano terreno, ele abre a porta dupla de uma sala impetuosamente, ofegando um pouco, e começa a fazer inconfidências farsescas sobre sua vida, tendo por plateia onze completos desconhecidos.

Nunca se pode deixar de ter claro que “Rocketman” dá muito mais ênfase ao lado musical que à sua natureza de cinebiografia, isto é, deve-se absorver tudo o que John canta pela boca de Egerton e rejeitar grande parte do que a narrativa vende como a história do astro. Nesse mesmo segmento, que conforme se vai se saber no desfecho, retrata uma fase de debacle física e moral de Elton John, Fletcher já brinca com a aura ficcional de sua biografia assumidamente romanceada — e saborosamente kitsch — e põe na fala de sua estrela descrições de eventos que só aconteceram na cabeça dele, ou aqueles que, se tivessem se passado, o teriam mantido bem longe dali. Como um pai sensível, melômano, amante do jazz (isso é verdade), que partilhava com o filho itens de sua preciosa discoteca, que se dedicava a transmitir para o menino suas impressões a respeito da arte por horas; ou de uma mãe abnegada, que o valorizava desinteressadamente, e não para manter o casamento de aparências por algum anos mais. O roteiro de Lee Hal toma o fácil atalho de defender o argumento de que a carência afetiva e a negligência parental fizeram de Elton John o que ele chegara a se tornar, para o bem e, sobretudo, para o mal; que a aptidão invulgar para a música — até os 11 anos, quando recebeu uma bolsa de estudos para a Royal Academy of Music, Reginald sempre estudara por sua própria conta e tocava piano de ouvido, baseando-se em sua intuição poderosa sobre o que entendia das partituras — teria se originado da necessidade de se fazer notar pelo pai, Stanley, de Steven Mackintosh, bem como o vício em álcool, maconha e cocaína, nessa ordem (e, posteriormente, a compulsão por compras), seria uma resposta inconsciente ao desprezo do companheiro, John Reid, de Richard Madden, que era também seu empresário, mera pirraça de uma criança mimada que nunca tivera de dar duro por coisa alguma, como a mãe do cantor, Sheila, personagem de Bryce Dallas Howard, diz a um John adulto.

Os traumas de Elton John certamente o ajudaram a se constituir o homem em que se transformara — como se dá com todo mundo, aliás —, raciocínio que também se aplica quanto a analisar sua carreira. Entretanto, em se lendo a trajetória de John à luz da realidade, comparando sua vida como ela é com as inúmeras possibilidades de como poderia ter sido, é nítida a vontade do músico de se tornar quem sempre fora, segundo ensinara Nietzsche, sem envolver ninguém mais nisso, uma jornada de autoconhecimento em busca de uma verdade que sempre estivera ali.

É quase teratológico que Elton John tenha sido tão travado no espírito levando a vida da maneira que levava, sobretudo no princípio da carreira, marcada pelos figurinos espalhafatosos. Sua personalidade secretamente controversa vai sendo minuciosamente decifrada pelo público graças ao gênio de Taron Egerton. O ator vem se mostrando um intérprete maneável, transitando sem dificuldade entre drama, comédia e ação, convencendo, de acordo com o que se assiste em “Rocketman”, quando é desafiado a cantar ou a dedilhar melodias ao piano. Egerton proporciona ao espectador momentos inesquecíveis, como o que registra a confecção de “Your Song”, em 1971, no fim do primeiro ato, para a audiência inaugural de seus incontáveis shows a partir daquele instante: a mãe; a avó Ivy, da veterana Gemma Jones, figura central na consolidação de Reginald como indivíduo e como artista; e Bernie Taupkin, seu parceiro de trabalho, interpretado com leveza por Jamie Bell, que, por óbvio, lhe despertara a paixão (ainda que platônica) que Elton John, profissional até o osso, soube capitalizar para os palcos.

As comparações com outras produções do gênero — a exemplo de “Bohemian Rhapsody” (2018), também comandado por Dexter Fletcher após a demissão de Bryan Singer por “comportamento errático”, leia-se absenteísmo, ou vadiagem mesmo — são inevitáveis. A cinebiografia de Freddy Mercury (1946-1991) — como Elton John um artista espantosamente talentoso e de excentricidades semelhantes —, líder do Queen, usa de muito mais realismo quanto a eternizar a história do vocalista de uma das bandas de rock britânicas mais relevantes de todos os tempos. Contudo, ao optar por um enredo desabridamente imaginoso, em “Rocketman” Fletcher esclarece que está tratando da vida de Elton John, mas também de algo maior. No filme, o diretor se fundamenta na persona de Elton John como grande expoente da arte de seu tempo, com os trechos musicais como o ponto mais alto de seu projeto.

“Rocketman” acaba quase como começou, valendo-se de uma analepse que mostra a redenção de seu protagonista depois do inferno das drogas, ao passo que entoa “I’m Still Standing”, um de seus grandes sucessos. Composta em 1983, justamente na quadra de sua vida em que se preparava para voltar com tudo, o hit retrata com toda a fidedignidade o quão complexa pode ser a vida de um dos músicos mais admiráveis que a humanidade já viu, mas que parecia querer muito pouco, talvez só ser um dono-de-casa aplicado, com marido e filhos de quem se ocupar. Como também queria Freddy Mercury.