Caetano Veloso procura a sutileza perdida do Brasil Foto: Fernando Young / Divulgação

Caetano Veloso procura a sutileza perdida do Brasil

A vida de Caetano Veloso virou um reality show durante a pandemia de Covid. No apartamento do Rio de Janeiro, ele e a esposa Paula Lavigne registraram o dia a dia do compositor e postaram vídeos no Instagram: leituras, pequenos improvisos no violão, seu processo criativo, o nascimento do neto Benjamin e uma concorrida “live” que emocionou os admiradores. Parece que, no meio do horror do confinamento, saía daquele lugar uma esperança — que resultou no disco “Meu Coco” (2021).

Cada uma das 12 canções mostra o olhar e o ouvido de Caetano em busca de um horizonte. Pode ser a ideia do brasileiro miscigenado, o canto para o neto recém-nascido (“Acalanto”), as citações a artistas que vão de João Gilberto a Maiara & Maraisa ou o aceno aos portugueses. Trata-se de um desejo de comunhão, a intenção de juntar o que está fraturado, tanto nos arranjos musicais e como nas letras. O som procura o sentido que está no encontro, jamais nas divisões no mundo e, sobretudo, no país.

A faixa-título traz a batida do Olodum, já muito usada por Caetano, para reforçar a utopia modernista. Um povo de diversas origens que tem uma contribuição para o mundo, por meio de sua cultura: “Somos mulatos híbridos e mamelucos/E muito mais cafuzos do que tudo mais/O português é o negro dentre as eurolínguas/Superaremos cãibras, furúnculos, ínguas”. E acrescenta: “Católicos de axé e neopetencostais/Nação grande demais para que alguém engula/Avisa aos navegantes, bandeira da paz”.

Meu Coco, Caetano Veloso (Sony Music Group)

A visão de Caetano se expande na música “Enzo Gabriel”. Segundo o próprio cantor, a ideia surgiu da notícia de que este era o nome composto mais registrado no país em 2018 e 2019. A letra saúda esses recém-nascidos que vão construir o futuro brasileiro. Aparece a utopia do sujeito híbrido: “Um menino guenzo ou um gigante negro de olho azul/ Ianomâmi, luso, banto, sul”. São sujeitos que terão um papel de salvação: “Enzo Gabriel, sei que a luz é sutil/Mas já verás o que é nasceres no Brasil”.

A rima “sutil-Brasil” deixa claro o quanto Caetano alterna o pessimismo com o andar da situação global (sobretudo na canção “Anjos tronchos”) e a esperança de que amanhã poder ser melhor que ontem e hoje. Desde o Tropicalismo, o cantor baiano carrega essa ambivalência de juntar o arcaico e o moderno, a tradição e a tecnologia, o nacional e o cosmopolita, o samba e o rock. É desse atrito de opostos que surgem as canções do autor de “Alegria- Alegria”.

Às vezes, Caetano recai na tentação de crer na potência da indústria da cultura. Em outros momentos, cai a ficha sobre as ruínas do país, como canta com a portuguesa Carminho em “Você-você”: “Eu cá nesta AmericÁfrica/Vivo entre miséria e mágica”. De novo ressurge a vontade de comunhão ou de uma comunidade, no caso, de uma língua com portugueses, africanos e brasileiros: “Tu és você, sou você/Eu e tu, você e ela/Ary, Noel, Tom e Chico/Amália, blues, tango e rumba/Atabaque e bailarico”.

Central na utopia modernista de 1922, o encontro de classes sociais e culturas aparece em “Sem samba não dá”. Caetano sabe que o Brasil mudou, está cindido e tem inúmeros artistas “periféricos”. Há um lugar de fala que revelou sertanejos e funkeiros. Em ritmo de samba clássico, a canção cita: Anavitória, “Mar(av)ília” Mendonça, Ferrugem, Glória Groove, Maiara, Maraísa, “Djonga com Rogério”, MC Cabelinho, Baco Exu do Blues, Duda Beat, Gabriel do Borel, Hiran, Majur, Simone e Simaria.

A lista de “Sem samba não dá” lembra a enumeração feita por Chico Buarque em “Paratodos” (1993) e, também, do próprio Caetano em “Sampa” (1978). É a convocação para estar junto, e não separado. O ideal é da conversa, troca, e não da ruptura. Trata-se de uma sutileza presente nas grandes interpretações do Brasil, escritas por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque na década de 1930. Essa cordialidade tinha evidentemente problemas, porém sinalizava para uma certa convivência possível.