Rimbaud, Flaubert e as revoltas parisienses

Rimbaud, Flaubert e as revoltas parisienses

Acaba de ser publicada uma nova edição em português com duas obras maiores do poeta francês Arthur Rimbaud. O livro “Um Tempo no Inferno e Iluminações” é uma das portas de entrada para um dos escritores mais influentes da cultura erudita e da popular, sobretudo entre os jovens. Foi um autor de cabeceira de astros do rock como Jim Morrison (The Doors), Bob Dylan, Patti Smith, Cazuza e Renato Russo. A fama de maldito, a biografia maluca, os amores por outros homens, tudo ajudou para torná-lo mundialmente conhecido e modelo de rebeldia e precocidade nas artes.

Morto com apenas 37 anos de idade, Rimbaud (1854-1891) viveu numa das épocas mais conturbadas da sociedade francesa. Aquele foi o período de Segundo Império, que nasceu de um golpe de Estado clássico dado por Napoleão III, em 1852, e terminou em 1870 às vésperas da famosa Comuna de Paris. O tempo também dos grandes autores (Gustave Flaubert, Charles Baudelaire), pintores (a juventude dos que seriam chamados de impressionistas) e, acima de tudo, das revoltas populares e revolucionárias. Nada disso passou despercebido pelo rapaz com veia poética sem igual.

Um Tempo no Inferno e Iluminações (Todavia, 264 páginas)

Em meados do século 19, as contradições francesas eram evidentes. De um lado, havia a ditadura napoleônica, um regime imperial gestado na força e de caráter modernizador. A outra ponta trazia a atividade cultural em ebulição, incluindo a conhecida e controversa reforma urbanística de Paris realizadas pelo então prefeito, o barão Haussmann. Esse ambiente político e cultural provocou transformações intensas, resultando por exemplo no surgimento da ideia de “arte pela arte” ou de autonomia dos artistas — coisas que reverberam ainda hoje no debate da cultura.

Nas últimas décadas, apareceram novos estudos que redefiniram o papel daquelas figuras francesas. Contra a ideia de uma arte alheia aos movimentos do mundo concreto, ficou clara a visão aguda de Flaubert e de Rimbaud sobre a realidade daquele momento, no século 19 das grandes utopias e mudanças sociais. O autor de “A Educação Sentimental” passou a ser visto como o observador mais preciso, por exemplo, das revoltas de 1948, e o poeta marginal está ligado aos tempos da Comuna de 1871. Ambos anteciparam, em boa medida, a radicalização estética do século 20.

Primavera dos povos

O ano de 1848 encerrou a Era das Revoluções, iniciada em 1789 na França, segundo Eric Hobsbawm. Aquela foi uma época de miséria e crise social na Europa, que culminaria nas revoltas populares em todo o continente, a chamada Primavera dos Povos. Em diversos países e regiões, os europeus sonharam intensamente com projetos republicanos, mas se frustraram com a reação violenta de grupos ligados aos antigos regimes. O fracasso das jornadas de 48 resultou em governos conservadores, ditaduras e, ao mesmo tempo, na reviravolta das artes em geral.

Morreram então os sonhos românticos do século 19, ligados aos ideais de modernização e construção de tradições nacionais. Depois de 1848, surgiu uma nova sensibilidade artística que proporcionaria fenômenos como o impressionismo nas artes plásticas e a literatura de Flaubert (1821-1880) e Baudelaire (1821-1867). Pode-se dizer que começou uma fase de pós-realismo, com uma estética que se afastou da escrita de Balzac, de Stendhal, e da pintura de Gustave Coubert. Nos melhores momentos, houve o incremento da visão subjetiva do mundo e das coisas.

Gustave Flaubert

Flaubert é uma figura emblemática do novo período, por encarnar o espírito da transição. Em 1856, portanto já na ditadura napoleônica, ele publicou o clássico romance “Madame Bovary”. Especialistas do porte de um Pierre Bourdieu, no livro “As Regras da Arte”, apontam a escrita flaubertiana como o início da ideia de “arte pela arte”. A representação realista deixa de ser o foco do escritor que, por sua vez, começa a mergulhar no mundo interior dos personagens. Esse pós-realismo dá impressão de flertar até com um antirrealismo em seus momentos mais fortes.

A trauma de 1848 foi lentamente elaborado por Flaubert ao longo dos anos e culminou na obra-prima do romance “A Educação Sentimental” (1869). É uma narrativa em que nada parece acontecer, há lacunas, saltos temporais, muita coisa não-dita. O sentimento do tédio que envenena a cabeça das personagens da época, e é fundamental para entender os inconformistas do século 19. Contra a interpretação usual, Bourdieu diz que esse livro traz uma descrição perfeita da estrutura social da França nos anos 1940, e sobretudo da construção do mercado do gosto na apreciação artística.

O personagem Frédéric Moreau é um sujeito indeterminado que vaga em meio àquela sociedade prestes a explodir em 1848. Sai da província e cai na Paris, a capital do século. Muito se falou de um Flaubert alheio à política, porém cada vez mais estudos mostram a precisão dele em mapear e captar o espírito daquela época — até o dia da queda dos revolucionários de junho de 1848. Suas andanças por Paris, as amizades e as paixões, como o amor pela Madame Arnoux, que Frédéric conhece nas primeiras páginas no romance, durante uma viagem ao interior francês.

O olhar de Flaubert ainda ajuda muito quem analisa o mundo daqueles anos conturbados, conforme mostrou David Harvey em sua análise da Paris do século 19. A “concorrência” de interpretações não é simples: as jornadas de 1848 inspiraram Marx a escrever “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”. Também Alexis de Tocqueville, então parlamentar, deixou registros memorialísticos no livro “Lembranças de 1848”. Interessante que os dois pensadores recorreram às imagens do teatro para analisar a política — como na célebre frase marxista da História que se repete como tragédia e farsa.

Sujeito à deriva

Dois momentos simultâneos levaram ao fim da ditadura bonapartista, o Segundo Império, que havia promovido um grande surto de desenvolvimento e industrialização da França. Primeiro, houve a guerra dos franceses contra a Prússia, então chefiada pelo mítico chanceler Otto Von Bismarck. Ao mesmo tempo, cresceu internamente o movimento socialista francês — fruto do espectro que rondou a Europa, de acordo com a célebre frase de Marx. De março a maio de 1871, a cidade de Paris ficou nas mãos dos “communards” que, no final das contas, acabaram massacrados.

Arthur Rimbaud

Arthur Rimbaud tinha meros 16 anos de idade no período da Comuna. O talento precoce consolidou a imagem do gênio indomável. Seis meses após o levante, ele apresentou o poema “O barco ébrio” ou “O barco bêbado”, de acordo com os tradutores brasileiros. Nasceu ali o mito do artista muito jovem, carregado de uma veia poética sem limites. Quem contou a história do poeta de maneira mais acessível, foi o escritor Edmund White em sua breve biografia “Rimbaud — A Vida Dupla de um Rebelde”. A trajetória descrita é de alguém muito ligado ao seu tempo e espaço.

“Rimbaud tinha afinidades com os communards. Como eles, era violentamente anticlerical. Como eles, zombava das autoridades, da burguesia, do monarca deposto. Vários dos poemas escritos em 1870 e 1871 revelam quanto ele podia ser subversivo”, relata Edmund White.

Esse sentimento subversivo pós-1848, o crítico alemão Dolf Oehler vai chamá-lo de “estética antiburguesa” no livro “O Velho Mundo Desce aos Infernos”, lançado no Brasil em 1999. Trata-se de algo novo surgido com a arte pós-realista e, mais importante, que reivindica uma autonomia do escritor. Mas não se trata de uma literatura descolada da realidade histórica. A escrita mais hermética ou indecifrável pode carregar as percepções mais agudas do mundo — mesmo falando de coisa distantes no tempo e no espaço, segundo a conhecida formulação de Machado de Assis.

A obra de Rimbaud chamou a atenção dos maiores críticos e escritores filiados ao marxismo no século 20. Ele é bem mais interessante do que os autores naturalistas da época que tinham ambições de um registro científico e total da sociedade. O filósofo alemão Walter Benjamin é exemplar da leitura para além do realismo e conta, por exemplo, de uma conversa que teve com o dramaturgo e poeta Bertolt Brecht. O autor da “Ópera dos Três Vinténs” e de “Galileu Galilei” admirava a escrita rimbaudiana, sobretudo o poema “O barco ébrio”: “Em sua opinião [a de Brecht], se Marx e Lênin tivessem lido este último, teriam percebido o grande movimento histórico do qual é expressão. Eles teriam reconhecido facilmente que o que se descreve não é o passeio excêntrico de um homem, mas a fuga, o vagabundear de um homem que não suporta mais as barreiras de uma classe que começava — com a guerra da Criméia, com a aventura mexicana — a abrir também os destinos exóticos da Terra para seus interesses mercantis”.

Num desses movimentos inexplicáveis, Rimbaud virou ídolo de roqueiros a partir dos anos 1960, muito mais do que o irlandês Oscar Wilde (outro modelo de inconformismo). Líder do The Doors, Jim Morrison era um discípulo assumido. Bob Dylan também foi um leitor assíduo e divulgador do jovem rebelde. Havia algo de contracultural (liberdade, viagens, drogas) que atraiu o pessoal da música. Tamanha veneração levou a cantora norte-americana Patti Smith, aos 16 anos de idade, a roubar o livro “Iluminations” numa banca da rodoviária da cidade da Filadélfia, por não ter 99 centavos para comprá-lo.

“Rimbaud tinha as chaves para uma linguagem mística que devorei mesmo sem ainda ser capaz de decifrar. Meu amor não correspondido por ele era tão real para mim quanto qualquer coisa que eu já houvesse experimentado. Na gráfica onde eu trabalhara com um grupo de mulheres duras e analfabetas, fui perseguida por causa dele”, diz Patti Smith, no livro “Só Garotos”. “Era por ele que eu escrevia e sonhava. Ele se tornou meu arcanjo, livrando-me dos mundanos da vida fabril.”

No Brasil, o fascínio por Rimbaud se refletiu no mundo jovem dos roqueiros dos anos 1980. Cazuza citou o poeta francês na música “Só as mães são felizes”: “Nunca viu Allen Ginsberg/ Pagando michê na Alaska/ Nem Rimbaud pelas tantas/ Negociando escravas brancas”. Ele faz menção à relação homoafetiva de Rimbaud com o poeta Paul Verlaine (1844-1896) e à lenda de ele ter traficado na África. Com histórias e aventuras pelo mundo, o atormentado jovem Arthur Rimbaud foi vivido por Leonardo DiCaprio no filme “Eclipse de Uma Paixão” (1995), alimentando o mito.