Já começou o matriarcado nas séries

Já começou o matriarcado nas séries

Uma cena de “Casa de Papel” marcou a virada, rumo ao feminino, nas séries de televisão e de streaming. No meio da confusão do assalto na história, a personagem Nairobi recebe a instrução para assumir o comando da operação e solta a conhecida frase: “Que comece o matriarcado”. Foi um sinal de que os homens em crise passaram a um segundo plano na recente ficção seriada, contrariando a política em várias partes do mundo que estava sendo invadida por uma masculinidade fora de hora e tóxica.

No livro “Homens Difíceis”, Brett Martin observou o quanto as primeiras séries mais famosas estão repletas de figuras masculinas em profunda crise existencial e fragilizadas. Pode ser o mafioso deprimido de “Família Soprano” (1999), o publicitário beberrão de “Mad Men” (2007) ou o doente terminal de “Breaking Bad” (2008) que mergulha na criminalidade. Todos são homens em estágios finais, crepusculares, e esgotados dentro de um modelo de macho que domina historicamente o mundo.

O giro rumo às mulheres aparece em “Casa de Papel” (2017), “Big Little Lies” (2017), “Godless” (2017) e “Mare of Eastown” (2021). As quatro séries inverteram os papéis esperados para os gêneros e até resgatam mitos tradicionais do feminino (como o das bruxas, um dos maiores estigmas já criados). É uma renovação de perspectiva em relação às surradas histórias de homens brancos, classe média e heterossexuais do cinema, ou seja, eles são figuras exauridas em termos narrativos.

As mulheres de “Casa de Papel” são um caso à parte: Nairobi, a narradora Tóquio, a ex-policial Lisboa e a convertida Estocolmo. Eles dão as cartas em várias sequências da série, escolhem com quem se relacionar sexual e emocionalmente. Há traços que lembram os jogos de gêneros de Pedro Almodóvar — mestre em pensar como se formam as identidades de mulheres e homens, subvertendo ideias fixas. É tanta energia que Nairobi e Tóquio são levadas ao sacrifício, em mortes trágicas para amarrar a história.

“Big Little Lies” resgata nitidamente o mito do sabá das feiticeiras. Ao invés de reuniões para celebrar o que foi proibido às mulheres, as personagens se unem gradativamente para um acerto de contas. O alvo é o velho conhecido homem violento, marido de uma delas, sujeito bem-sucedido nos negócios e que maltrata mulheres. O cenário da história é uma região de alta renda no sul da Califórnia, um paraíso artificial, onde vive famílias dignas de capas de revistas e de publicidade dos anos 1950.

A subversão mais intensa ocorre na série “Godless”. Trata-se da história de uma cidade no Velho Oeste que perdeu todos os seus homens na explosão de uma mina. Restaram apenas as esposas e filhos para reconstruir o local, na base de um poderoso matriarcado. Não existe sinal de descendentes dos personagens clássicos feitos por John Wayne ou Clint Eastwood. Um povoado de escravos libertos, próximo à cidade, completa o quadro de um faroeste dominado por minorias (mulheres, negros e indígenas).

A mais recente contribuição ao protagonismo feminino é “Mare of Easttown”, uma história de policial com a atriz Kate Winslet. Sem maquiagem e fazendo a figura de uma avó, ela investiga dois crimes estranhos na pequena cidade no interior dos Estados Unidos. A personagem carrega o trauma do suicídio do filho e se mostra a detetive com inúmeras falhas de um ser humano, bem distante da imagem clássico do investigador que sabe tudo, tem um caso com uma “femme fatale” e fuma sem parar.