A ficção e o pensamento após o 11 de setembro de 2001

A cultura consegue aceitar qualquer personagem ou história, por mais polêmico que seja. Algo de humano pode aparecer em ladrões, perversos, malucos de rua e caubóis que barbarizam no Velho Oeste. Das figuras problemáticas, apenas os terroristas não têm vez. Essa interpretação do mundo faz parte de um trecho do romance “Mao II” (1991), do norte-americano Don DeLillo, e é um fio da meada para pensar os caminhos tomados pela arte e pelo pensamento após os atentados de 11 de setembro de 2001. O evento histórico que, 20 anos atrás, parou e virou as coisas de cabeça para baixo.

DeLillo compara os efeitos sociais de um ato terrorista e de uma obra de ficção. Para ele, as artes teriam perdido sua capacidade de chocar as pessoas. Não se tem mais o impacto dos modernistas do começo do século 20 — nem mesmo da novidade estética. “O grau de influência que eles [os terroristas] conseguem exercer sobre a consciência das massas é proporcional ao nosso declínio [dos romancistas] como formadores de sensibilidade e opinião. O perigo que eles representam é igual ao nosso próprio fracasso em sermos perigosos”, diz o autor, em plena euforia do pós-modernismo.

“Em sociedades reduzidas a conspurcação e saciedade, o terror é o único ato significante. Existe coisas demais, mais coisas e mensagens e significados do que poderíamos usar em dez mil vidas. Inércia-histeria. É possível a história? Existe alguém sério? Quem pode ser levado a sério? Apenas o crente letal, aquele que mata e morre pela fé”, afirma um dos personagens de “Mao II”, acrescentando ao levantar a hipótese de centralidade do terrorismo na atualidade: “Mas essa é exatamente a linguagem [a do terror] que chama a atenção, a única linguagem que o Ocidente entende”.

A derrubada das Torres Gêmeas foi um daqueles eventos únicos que conseguem paralisar o fluxo de pessoas, mercadorias e dinheiro. É como se os relógios se congelassem por algum tempo, dado o tamanho do choque. Caso semelhante às regras de isolamento social e lockdowns adotadas para combater a epidemia da Covid-19 no ano passado. O mundo inteiro, o capitalismo, dá a freada brusca. Passado o baque como o dos atentados de 2001, entraram na ordem do dia questões como a arte traumática, a consolidação do pensamento religioso, o surgimento da islamofobia e a guerra ao terror.

Feridas na memória

As imagens ao vivo de Nova York mostraram um dos aviões batendo no prédio colossal, pessoas pulando da janela para o voo suicida, a poeira imensa levantada pelo desabamento das torres. Quem estava longe daquele local, pensou estar vendo o fim do mundo, como tantas encenaram os filmes de Hollywood. No livro “Ecologia do Medo”, Mike Davis fez um levantamento de quantas vezes a cidade de Los Angeles foi destruída nos filmes e nos romances, mostrando a existência de uma profecia ou de uma certeza que os Estados Unidos sempre tiveram sobre seu destino trágico e violento.

Don DeLillo l Foto: Joyce Ravid/Divulgação

O ponto central que fica é: como assimilar aquele atentado, dar conta de uma destruição daquele porte e refletir acerca dos significados de um ataque feito para ser filmado pelas câmeras de vídeo? As primeiras narrativas literárias para entender o 11 de setembro foram os romances “Extremamente Alto e Incrivelmente Perto” (2005), Jonathan Safran Foer; “Terra Baixas” (2008), de Joseph O’Neill; “Windows on the World” (2005), de Frédéric Beigbeder; e a série de histórias em quadrinhos “À Sombra das Torres Ausentes” (2004), de Art Spiegelman Nestes livros, o foco está no trauma da destruição.

Em 2007, Don DeLillo aprofundou o tema dos atentados no romance “Homem em Queda”. O personagem Keith Neudecker estava no prédio e foi um dos sobreviventes. A descrição da volta dele para casa é aterradora, na Nova York em pânico. A situação se agrava ao longo dos meses e anos seguintes. DeLillo narra a degeneração de um ser humano após um episódio daquela dimensão, sobretudo na relação de Keith com a esposa Lianne. Esta, por sua vez, assiste a uma performance em que um artista de rua prende uma corda nos pés e reproduz a cena de uma pessoa caindo das Torres Gêmeas.  

O inglês J.G. Ballard se inspirou claramente na questão dos atentados para escrever seu último romance, “Terroristas do Milênio” (2003). Mestre do pesadelo tecnológico, o escritor imaginou a rebelião de moradores de um condomínio inglês de classe média. Advogados, publicitários e arquitetos se reúnem para explodir uma bomba no Aeroporto de Londres. Motivo: inconformismo com a sociedade de consumo (videolocadoras, agências de viagem, museus). Quando se vê hoje a classe média de vários países votando em populistas radicais, percebe-se que Ballard viu bem o ovo da serpente no início.

O cinema se mostrou mais interessante quando tratou dos efeitos duradouros do 11 de setembro. “Torre Gêmeas” (2005), de Oliver Stone, é quase um documentário de ficção no calor da hora. Por outro lado, o filme “Déjà Vu” (2006) mostra o personagem de Denzel Washington na tentativa de corrigir o passado e assim evitar a explosão de um barco lotado de pessoas em Nova Orleans. Para isso, vai usar um inacreditável programa de vigilância que permite a viagem no tempo. A ficção científica imagina uma forma desesperada de corrigir o trauma provocado por terroristas.

Os atentados ao World Trade Center detonaram a busca insana pelos responsáveis dos ataques. Criou-se a “guerra ao terror” — cujos efeitos foram vistos recentemente, em 2021, na retomada do Afeganistão pelos talibãs. Filme emblemático dessa guerra é “A Hora Mais Escura” (2012), que mostra a caçada a Osama Bin Laden. Ali aparecem os métodos de tortura usados pelo exército dos Estados Unidos para arrancar informações. Trata-se de um cardápio das maiores barbaridades criadas pelo ser humano para ferir fisicamente um inimigo de combate. Impressiona o nível de brutalidade.

Biopolítica

A reação dos Estados Unidos aos atentados se concentrou na guerra ao terror, com foco específico nos árabes. Típica situação em que um povo considerado superior é atacado e parte para o revide violentíssimo. Para legitimar sua atuação, o governo norte-americano aprovou uma série de leis assentadas em medidas excepcionais (USA Patriot Act). Passou a existir o vale tudo para encontrar os autores do ataque em 11 de setembro. Assim caiu a ficha: havia sido criado um “estado de exceção”, a suspensão de normas que garantem, por exemplo, direitos humanos em sentido amplo e irrestrito.

O filósofo italiano Giorgio Agamben l Foto: Seagull Books

A guerra ao terrorismo deixou claro o que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou, a partir dos anos 1990, de um novo modelo de gestão política. Segundo ele, o paradigma moderno seria a “biopolítica”, tendo materialidade no campo de concentração de 2ª Guerra Mundial. O “lager” (o campo nazista) tinha regras que mudavam a todo momento para definir arbitrariamente quem deveria morrer ou viver. O pensador resgatou a figura do “homo sacer”, existente no direito romano antigo. Era a pessoa “matável” que poderia ser assassinada, sem que ninguém fosse legalmente acusado pelo crime.

O conceito de biopolítica se popularizou na medida que apareciam as notícias de tortura nas bases militares americanas de Guantánamo e Abu Ghraib. Os EUA torturavam com extrema violência os suspeitos de origem de árabe, como se vê no filme “A Hora Mais Escura” (2012). Tudo semelhante ao que se vê no filme “Sicário — Terra de ninguém” (2015), com mexicanos na fronteira com os Estados Unidos, e nos dois “Tropa de Elite” (2007) nas favelas cariocas.

As imagens do cinema deram forma às ideias de Agamben. Mais recentemente, apareceu o desdobramento chamado “necropolítica”, criado por Achille Mbembe, ou seja, a gestão voltada para matar suspeitos de crimes. A popularização desses termos vem banalizando o pensamento dos dois pensadores. É algo parecido ao que ocorreu com a teoria francesa da desconstrução — pau e tijolo para toda obra e discussão.    

Ao mesmo tempo que surgia a guerra ao terror, o pensamento pós-moderno surgido nos anos 1970 entrou em colapso. Um dos seus eixos dessa teoria era o esgotamento das chamadas “grandes narrativas”, como o marxismo, a religião e a psicanálise. Após o 11 de setembro, porém, o fundamentalismo religioso voltava com força redobrada, como bem notou Terry Eagleton no livro “Depois da Teoria” (2003). A virada rumo à religião também foi antecipada por Harold Bloom. Seu livro “O Cânone Ocidental” (1994) sugere a hipótese da mudança de uma Era Democrática para um novo tempo Teocrático.

No pós-2001, ainda na questão religiosa, os franceses assistiram ao crescimento interno da “islamofobia”. Muçulmanos seriam todos fundamentalistas e terroristas. A polêmica incendiou a França porque criou a polarização no país que se enxerga como racional, universalista e liberal, contra uma população árabe que seria o oposto. A discussão tenta, na verdade, escamotear a barbárie de todo processo civilizatório, haja vista justamente o período colonial a partir do século 15 e 16 quando os europeus pintaram e bordaram pelo mundo afora. Cometeram as maiores atrocidades, como a escravidão de africanos.

A série israelense “Fauda”, da Netflix, é uma síntese dessa etapa global que reúne estado de exceção, necropolítica, islamofobia e fundamentalismo religioso. A trama mostra um grupo especial da polícia de Israel que tem autorização para combater o terrorismo palestino e matar quem bem entender. É um horror, porque a prisão de suspeitos leva à morte de dezenas de pessoas nas ruas ou numa mera festa de casamento. Agentes a serviço do governo israelense se vestem e falam como palestinos, gerando uma zona de cinzenta, de indistinção, que se globalizou após os atentados ao World Trade Center.

A guerra religiosa parece estar no horizonte de vários cantos do mundo. Podem ser os muçulmanos do romance francês “Submissão” (2015), de Michel Houellebecq; os cristãos evangélicos no filme brasileiro “Divino Amor” (2019), de Gabriel Mascaro; e ou a batalha de judeus, mórmons, protestantes, ateus e católicos na peça teatral “Angels in America” (1991), de Tony Kushner, que a adaptou para o formato de série televisiva na HBO. Esse é um retrato do admirável mundo novo surgido, nos últimos 20 anos, com a derrubada das Torres Gêmeas e que dá apenas sinais de aprofundamento.