Cancelamento é tão velho quanto o teatro grego

Cancelamento é tão velho quanto o teatro grego

Em 2019, os australianos do Dicionário Macquerie elegeram a expressão “cultura do cancelamento” como a mais relevante daquele ano. Talvez por desconhecimento ou para surfar na onda do momento, a escolha recaiu sobre uma prática mais antiga que o rascunho da Bíblia, como diz um velho amigo. O teatro grego já encenava fartamente a expiação pública de um indivíduo — o ato de cancelar de pessoas cinco séculos antes de Cristo — em suas obras mais conhecidas.

Foi justamente contra a violência expiatória que se formou a Justiça, interrompendo a produção de vítimas e criando uma organização da sociedade. A diferença agora é que o cancelamento seria um fenômeno típico dos meios digitais. Penso que só é a maneira de pegar uma prática ancestral e dar nome novo. E parece que funcionou, pois o termo tornou-se de uso corrente, assim como a “desconstrução” que entrou para o vocabulário cotidiano e perdeu o sentido filosófico original.

A expiação dos gregos antigos era a expulsão do indivíduo da pólis. Ele assim carregava todos os males e os conflitos da cidade para fora dela. No cancelamento digital, ocorrem o “dislike” e o “unfollow” de um perfil, provocando isolamento. Faz-se um sacrifício de uma pessoa por meio de um tribunal informal de internautas. Nada mais, nada menos, do que já se conhece e faz há milênios. É quase uma estrutura de pensamento em diversas culturas, como mostrou Marcel Mauss ao estudar diversas culturas.

Caso exemplar é a peça “Édipo Rei”, de Sófocles. Por conta do famoso complexo freudiano (o filho que mata o pai para ter o amor da mãe), o tema da expiação ficou quase esquecido. O protagonista é o soberano que busca o assassino de Laio para acalmar a população revoltada. Ao final de tudo, ele mesmo descobre ser o responsável pelo crime, fura os próprios olhos e vai para Colono — na continuação da peça. Édipo abandona o trono de Tebas e se sacrifica com a ida para o exílio.

Segundo Derrida, a vítima da expiação no mundo grego era chamada de “pharmakós”, aquele que tinha função de purificar a comunidade que enfrentava algum problema sem solução. Ou seja, havia a crença de que o “cancelamento” de então era um remédio para situações de crise. Mas, ainda de acordo com Derrida, a palavra que designa “remédio” em grego era a mesma que nomeava o “veneno”: phármakon. Em suma, expiar ou cancelar trazia a cura e envenenamento, ao mesmo tempo.

Édipo na América

A epígrafe do romance “A Marca Humana” (2000), de Philip Roth, é um trecho do Édipo de Sófocles. “ÉDIPO: Qual da purificação? De que modo há de ser feito? CREONTE: pelo desterro, ou pela expiação do sangue pelo sangue…”. A vítima da expiação ou do cancelamento é o personagem Coleman Silk, acusado de se referir a um aluno ausente em sala de “spook”. A palavra significa “fantasma”, porém era também usada para designar os escravos negros nos Estados Unidos do século 19.

Coleman cai em desgraça porque o estudante era afrodescendente. Arma-se um tribunal na universidade onde ele leciona para julgar o caso de racismo. Roth criou um Édipo na América, se inspirando tanto no soberano de Tebas, como no exilado de Colono. O autor quis fazer uma analogia de seu personagem com a história do presidente dos EUA, Bill Clinton, acusado violentamente de ter relações sexuais com uma estagiária da Casa Branca. O caso Clinton abalou o país e gerou uma crise sem precedentes.

O escritor sul-africano J.M. Coetzee também criou uma obra-prima tendo no centro uma situação de expiação ou cancelamento. No romance “Desonra” (1999), o personagem David Lurie é um professor que se envolve amorosamente com uma aluna na moderna Cidade do Cabo. O affair deles vai parar no conselho disciplinar da universidade que pune Lurie exemplarmente. Coetzee escreveu a história no contexto da Comissão da Verdade e Reconciliação, que analisou os crimes do Apartheid na África do Sul.

A situação de Lurie piora de vez na segunda parte do romance. Ele decide morar com a filha na zona rural e lá conhece a nova realidade do país. Um grupo de vizinhos lincha David, quase o levando à morte, e estupra a filha. O exílio do personagem é um inferno e mostra o quanto as expiações são parciais, temporárias e jamais apaziguam o mal-estar social. Dá para imaginar a polêmica trazida pelo livro, num contexto em que os sul-africanos acreditavam estar curando suas feridas com a Comissão da Verdade.

Justiça restaurativa

A literatura brasileira tem um livro clássico no trato do tema da expiação. Trata-se do romance “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa. O trecho fundamental é o julgamento do personagem Zé Bebelo, no meio do livro. Riobaldo ainda faz parte do bando do personagem Hermógenes e luta contra os “bebelos”. Após um embate, os “Hermógenes” capturam Zé Bebelo, que é levado aos grandes chefes dos jagunços. Os líderes todos defendem a condenação sumária do prisioneiro.

Mas Riobaldo tem outra ideia, mais inusitada. A maior punição, segundo ele, é a soltura de Bebelo para que todo o sertão e a jagunçada saibam da humilhação e do banimento daquele homem. Não se sabe de onde Guimarães Rosa tirou a ideia: um tribunal de exceção, uma justiça restaurativa, um julgamento sem punição física ou encarceramento. Nos anos 1950, o autor brasileiro pensou uma forma distinta de Justiça, algo sonhado e imaginado pelas melhores cabeças do século 21.

A intenção proposta pelo jagunço era interromper o círculo de violências no sertão, acabando assim com o “olho por olho” e o “dente por dente”. Trata-se de uma ideia tão avançada e inovadora que nem mesmo o narrador do “Grande Sertão” acredita em sua viabilidade. A parte final do romance, depois do tribunal de Zé Bebelo, é um mergulho nas trevas. A violência, as rixas de bandos, o diabo, são mais fortes e deixam claro que não existe saída para o sertão — e para o mundo.

A solução de Riobaldo se configura como uma ética do perdão, assim como pensaram pouco tempo atrás Jacques Derrida, Paul Ricoeur e Tzvetan Todorov. O problema é que as sociedades contemporâneas ainda não conseguem pensar uma Justiça formal sem penas ou encarceramento. Deseja-se o sofrimento do infrator, criminoso. Já nas práticas cotidianas e informais, permanecem os comportamentos arcaicos, muito primitivos, que recebem novos nomes de batismo como o de “cancelamento”.