Menos Nelson Rodrigues, mais Vianinha

Menos Nelson Rodrigues, mais Vianinha

Há um livro ou um documentário a ser feito para contar a história da construção do mito Nelson Rodrigues. O dramaturgo, cronista de jornal e romancista menor que, nos últimos 30 anos, foi levado ao panteão de grande literatura. A partir de avaliações questionáveis, ele alcançou o patamar dos pensadores da alma humana, de um moralista na tradição do século 18 ou de um “Montaigne do Brasil”, segundos os intérpretes mais entusiasmados. O fato é que essa valorização no mercado cultural seguiu pouco a ordem natural das coisas e teve muito mais a ver com disputas violentas.

É curioso que a ascensão de Nelson Rodrigues veio juntamente com o rebaixamento dos dramaturgos Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha), Augusto Boal e, mesmo, Dias Gomes. Eram os seus adversários na conquista de público e reconhecimento. Criou-se assim uma polarização entre o reacionário confesso e os três autores ligados ao então partido comunista. Não por acaso a aclamação maior da obra rodrigueana ocorreu após a queda do Muro de Berlim e a derrota política do pensamento de esquerda nos anos 1990 — o que potencializou também a revalorização de Gilberto Freyre.

A consagração do autor de “Vestido de Noiva” veio certamente com a biografia “O Anjo Pornográfico” (1992), de Ruy Castro. Junto com este best-seller, apareceu a edição das crônicas completas. Na mesma época, um conjunto de textos ficcionais serviu de base para a série “A Vida Como Ela É”, que foi exibida no programa Fantástico da TV Globo. A emissora de maior audiência no país apresentou o autor às novas gerações. E citações de suas frases apareciam em escritos de pessoas alinhadas tanto ao pensamento de direita, como ao de esquerda, criando uma convergência esdrúxula.

Passado o boom rodrigueano, começa recentemente o necessário refluxo. Vianinha vem sendo finalmente relançado em livro. O cineasta Jorge Furtado fez, em 2018, o filme “Rasga Coração”, baseado na peça teatral homônima. Além disso, a TV Globo refilmou a série de comédia “A Grande Família”, criada nos anos 1970 por Vianinha num momento que a censura política barrou todas as suas peças teatrais. Usando uma analogia que ficou popular nos últimos anos, chegou a hora de ter se “menos Nelson Rodrigues” e “mais Vianinha” — além de Boal e Dias Gomes.

Conformismo militante

O fenômeno Nelson Rodrigues foi construído tijolo a tijolo pelo próprio autor. A biografia escrita por Ruy Castro mostra como o então cronista formou uma rede de amigos para elogiá-lo e assim erguer a fama de dramaturgo maior do Brasil. Algumas histórias chegam a ser constrangedoras, dada a obsessão em ser reconhecido e aclamado. O resultado foi que a peça “Vestida de Noiva” (1943) nasceu já com a aura de clássico e de refundação do teatro nacional.

Nelson Rodrigues l Foto: Funarte/Reprodução

A crítica teatral Iná Camargo Costa reconstruiu esse movimento de consagração autoral no texto “Alaíde Moreira no purgatório”. Segundo ela, Nelson Rodrigues se apropriou descaradamente da peça “L’inconnue d’Arras” (1935), de Armand Salacrou, para escrever “Vestido de Noiva”. Plágio? Iná não quis ferir o fã-clube das novas gerações que, no pós-Guerra Fria, descobriu o escritor. Ela lembrou o quanto o autor gostava de acusar outros escritores de “ladrão de goiabeiras”. Após ler o ensaio provocativo de Iná, conclui-se que Nelson tinha sim obsessão em pegar goiabas nos pomares de outras pessoas — mas tudo com discrição, para manter a aura de gênio.

Para construir a fama artística, o dramaturgo usava a trincheira das crônicas de jornal. Ainda que tente minimizar o tom agressivo, Ruy Castro inventaria os ataques repetidos e infames de Nelson aos concorrentes de teatro (Vianinha, Dias Gomes). São barbaridades em cima de barbaridades. Sobretudo na década de 1960, a pena reacionária do então cronista foi implacável contra os adversários artísticos e políticos. Ao ler a produção rodrigueana da época, o crítico literário Roberto Schwarz formulou definições precisas para aquele tipo de escrita: “estilização da calúnia” e “podridão programática”.

“A finalidade cafajeste da fabulação não é escondida, pelo contrário, é nela que está a comicidade do recurso. Entretanto, se é transformada em método e voltada sempre contra os mesmos adversários — contra os quais a polícia também investe — a imaginação abertamente mentirosa e mal-intencionada deixa de ser uma blague, e opera a liquidação, o suicídio da literatura”, notou Schwarz. Era um conformismo militante que se encaixava às mil maravilhas ao “vale-tudo” da época. Hoje, a perseguição de Nelson contra seus adversários seria chamada, no mínimo, de “cancelamento”.  

Mitologia rodrigueana

Ruy Castro criou a imagem do gênio herético. Um autor contraditório, exagerado, mas sábio, muito sábio, de acordo com a biografia. Em 2009, o crítico Luís Augusto Fischer colocou mais um tijolinho no mito, com o livro “Inteligência com Dor — Nelson Rodrigues Ensaísta”. Um representante da tradição crítica de Antonio Candido elogiou fortemente as crônicas rodrigueanas — algo de se espantar. É surpreendente que, ao comentar o texto “O ex-Covarde”, Fischer crie a mitologia de um “Montaigne do Brasil”. O autor que usava a “estilização da calúnia” passou a ser lido como o decifrador da alma humana.

Segundo Fischer, o texto sobre o ex-covarde “demonstra à saciedade quão aparentados são Montaigne e Nelson: o depoimento pessoal como fonte da força das palavras, a relutante ou hesitante aceitação do início da confissão, o destemor em arriscar palpites, teses, afirmações sobre o mundo”. Nem próprio Nelson Rodrigues esperaria tamanha comparação. Poderia ser um Montaigne dos baixos instintos, o que fica bem para criador de dramalhões e tragédias da classe média carioca em meados do século 20. Hoje, de acordo com o espírito do tempo, o cronista está no rol dos filósofos.

Sem a elegância discreta de Fischer, o filósofo e palestrante Luiz Felipe Pondé escreveu “A Filosofia da Adúltera” em 2015. O título chega a dar calafrios e tem intenção declarada de atacar o pensamento dito “politicamente correto”. É cool ser incorreto, afinal. Ser correto é visto como mera “chatice”. Certo mesmo é que o livro de Pondé confirmou a existência de um mercado lucrativo para polêmicas conservadoras e ligeiras (o “fast thinking”, de Bourdieu), cuja matriz está na escrita rodrigueana. Numa entrevista, ele deixou clara a devoção ao mestre, colocado no panteão de grande pensador da humanidade (e não só do Brasil):

“Quando você é apaixonado por algo, uma das formas de lidar com isso — além do afeto — é transformar essa paixão em trabalho. Eu quis escrever um livro falando sobre a importância do Nelson Rodrigues para a filosofia. Para isso, me ative à personagem da adúltera, aquela que carrega o pecado, que conhece o desejo, e que é uma personagem muito recorrente na obra dele.” Elogios e mais elogios para quem um dia definiu que toda unanimidade é burra. Por certo, o dramaturgo se sentiria lisonjeado com a aclamação de seus epígonos literários.

Redescoberta de Vianinha

Como toda construção de cânones nas artes, a consagração de um nome significa o apagamento de outros. No caso do teatro, o mito Nelson Rodrigues levou à retirada de cenas de autores fundamentais como Vianinha, Boal e, também, Jorge de Andrade. Dias Gomes é mais lembrados por suas telenovelas. Por isso, é necessário o processo permanente de revisão crítica. 

Oduvaldo Vianna Filho, Vianinha l Foto: Jornal Rascunho/Reprodução

Autor de “Rasga Coração”, Vianinha morreu com apenas 38 anos de idade, em 1974, quando não conseguia mais trabalhar no teatro por conta da censura. A formação dele ocorreu nos Centros Populares de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE). A iniciativa é hoje vista de forma negativa, datada e associada ao engajamento político. Em seus estudos, porém, Iná Camargo vê as críticas ao CPC como infundadas, porque havia muita pesquisa estética e relação estreita com o público. Talvez não seja por acaso que esse pessoal tenha renovado a teledramaturgia nos anos 1970.

A censura oficial barrou a partir de 1965 o trabalho de Vianinha. Só restou a ele o caminho da televisão, onde ficou famoso com “A Grande Família”. Desde o ano passado, a editora Temporal vem lançando suas peças em livro: “Mão na Luva”, “Corpo a Corpo”, “Moço em Estado de Sítio”, “A Longa Noite de Cristal” e “Papa Highirte”. O grande legado é, sem dúvida, o trabalho de “Rasga Coração”, no qual ele conta a história de militantes políticos entre os anos 1930 e 1970. No filme recente, Jorge Furtado transportou a história de Custódio (o Manguari Pistolão) e de Lorde Bundinha para o Brasil do século 20.

Enquanto o mundo estava às voltas com inovações de Beckett e Brecht nos anos 1940, a dramaturgia rodrigueana mergulhou no drama convencional. Nas últimas décadas, Arnaldo Jabor deu mais um empurrãozinho na mitologia, com adaptações de peças para o cinema e citações abundantes em suas crônicas. O espírito conservador e as histórias perversas de Nelson Rodrigues pareceram feitos sob medida para o Brasil globalizado, na década de 1990. Enquanto isso, peças de seus “inimigos” caíam no esquecimento, dando provas de ser mais um sinal dos tempos estranhos.