A melhor série da Netflix em 2021

A melhor série da Netflix em 2021

As escolas tornaram-se o último espaço para a existência de algum tipo de conflito e dissenso na sociedade, em termos democráticos. Pode ser aqui no Brasil ou em outras partes do mundo — bastando lembrar o filme dinamarquês “Druk” (2020), de Thomas Vinterberg. Em outras instituições (empresas, igrejas, governos), por sua vez, reina uma rotina disciplinar que impede manifestação de discordância e exige-se o consenso com mão de ferro. A consequência desse estado de coisas é que o ambiente escolar virou uma panela de pressão na iminência de estourar.

A série “The Chair” (2021), da Netflix, traz uma história minúscula do Departamento de Inglês (equivalente aos cursos de Letras no Brasil), na fictícia faculdade de humanidades de Prembroke. Nesse mundinho, entretanto, é possível ver o mega combate social que se instaurou a partir dos anos 1990 e gerou boa parte do poço sem fundo atual das “guerras culturais”. Uma disputa de vida ou morte no único local em que a crítica ainda pode ser realizada, mesmo de forma mínima. Trata-se da batalha para conquistar corações e mentes, tendo sobretudo os jovens como alvo.

A personagem Ji-Yoon Kim (interpretada pela atriz Sandra Oh) assume o comando do departamento, sendo a primeira mulher nessa posição de prestígio. Sua missão inicial é dura: tal qual uma empresa, ela deve ajustar as receitas e as despesas, pois os alunos escasseiam. Problema maior são os professores tradicionalistas, a velha guarda que ensina da mesma maneira do que trinta anos atrás. Eles possuem os salários mais altos, porém os jovens fogem de suas aulas. Típica intelectual do mundo globalizado, a equilibrada Ji-Yoon decide acomodar o conflito interno.

Ela não pode desapontar os colegas e muito menos o reitor Larson (feito por David Morse), preocupado apenas com o ajuste de contas. Em sua primeira reunião, ela cita solenemente o crítico literário Harold Bloom: “Informações são fáceis de encontrar. Onde a sabedoria pode ser encontrada?”. É uma frase de efeito elaborada originalmente por quem mais atacou professores como Ji-Yoon, que renovaram os departamentos de inglês nos EUA a partir dos anos 1980. Numa época de fúria, Bloom batizou jocosamente essa nova geração de “escola do ressentimento”.

Solteira e de família coreana, a nova chefe do departamento adotou uma menina de origem mexicana, completando a imagem multicultural e iluminista que, na política, entrou em colapso nos últimos anos. O multiculturalismo de Ji-Yoon virou o alvo preferencial de liberais tradicionalistas, como Harold Bloom, e da nova direita americana (Alt-Right). A reação se baseia na suposta defesa de uma cultura superior. Esse é o contexto para lá de explosivo que serve de pano de fundo para “The Chair”. A série só não tem os radicais de direita; o restante está todo em cena.

Para piorar a situação de Ji-Yoon, seu melhor amigo fez uma brincadeira com o nazismo em sala de aula. Os alunos ficaram furiosos e querem a cabeça do professor humanista e desajustado Bill Dobson (feito por Jay Duplass). Ele enfrenta o luto da morte recente da esposa. Mas os estudantes não o perdoam e partem para o simples linchamento moral, na busca por bodes expiatórios. Os jovens são uma massa incontrolável que fica distante dos professores. Em tempos de “batalhas culturais”, o mínimo deslize vira motivo para um enfrentamento ou uma batalha sem tréguas.

Ao mesmo tempo, trava-se a outra guerra que opõe os docentes veteranos e os novatos. A professora negra Yaz (Nana Mensah) é a sensação do departamento, estimula os alunos a transformar em rap alguns trechos do romance “Moby Dick” e conta com milhares de seguidores nas redes sociais. Vira alvo de inveja dos colegas, obviamente. Na outra ponta, os tradicionalistas Elliot (Bob Balaban) e Joan (Holland Taylor) decidem dar um “golpe de estado” na nova chefe do departamento para evitar suas demissões. O confronto do velho com o novo caminha rumo à destruição.

O que “The Chair” encena muitíssimo bem, é a guerra cultural como um jogo de morte e uma luta por empregos numa economia que descarta o trabalho humano. A batalha é para definir quem controla e manda no dinheiro do Departamento de Inglês da Prembroke — quebrando a imagem de racionalidade e civilidade de uma faculdade. Não se trata de disputa em torno de valores, conhecimento, saber universal, defesa do “cânone ocidental” (como brigou Bloom pesadamente). É, pura e simplesmente, uma guerra fratricida por emprego e salários no mercado de trabalho.

Os seis primeiros capítulos da série parecem ser um aperitivo para as futuras “guerras dos tronos” num pequeno departamento de faculdade. Um microcosmo de uma briga maior e que atingiu níveis inacreditavelmente planetários em anos recentes, contaminando até a política partidária. Na primeira temporada de “The Chair”, Ji-Yoon e Bill são os perdedores — sinalizando para revides futuros que alimentem a trama. Quem venceu, por enquanto, foram os professores tradicionalistas, de paletó xadrez dos anos 1950 e um ressentimento destrutivo em relação aos colegas novatos.