Vidas Secas não é um livro sobre a seca no Nordeste, é uma metáfora sobre o homem

Vidas Secas não é um livro sobre a seca no Nordeste, é uma metáfora sobre o homem

Publicado em 1938, o romance, decerto o que mais deu visibilidade ao gênio do velho Graça, fala de um Brasil que não deveria existir. Graciliano sabia em que cumbuca estava metendo a mão. Ao narrar as desventuras de Fabiano, Sinhá Vitória, Baleia e os filhos, o mais velho e o mais novo, o autor dava azo, ainda que inconscientemente, a uma busca por respostas para a miséria do Nordeste brasileiro. Nesse particular, cabem dois apontamentos.

É curioso como Graciliano estrutura a obra que, ao contrário de Euclides da Cunha (1866-1909) em “Os Sertões”, não se propõe a realizar um relato jornalístico, por meio do qual se usa do mínimo de ficção a fim de se imprimir o máximo de realidade, tampouco emprega em seu livro o discurso narrativo à moda de um Guimarães Rosa (1908-1967) em “Grande Sertão: Veredas”, publicado quase 20 anos antes. “Vidas Secas” não é direto como o texto eminentemente realista de Euclides da Cunha, mas também não se presta à epopeia de Rosa, que glamouriza a vida nos rincões, sua gente, seus costumes. E “Vidas Secas” é o quê, afinal?

Em “Vidas Secas”, Graciliano Ramos toma a maior distância possível do objeto de sua descrição, qual seja, as vicissitudes de uma família em meio ao esquecimento, à fome, ao caos de uma existência sem perspectiva nenhuma. Quando dá preferência ao narrador em terceira pessoa, que tudo sabe e, portanto, conduz a história, Graciliano passa uma mensagem tão vítrea quanto contundente: o sertanejo é um pobre-diabo, um infeliz, um ninguém que erra pelos descaminhos do Nordeste profundo à medida que observa o comportamento das aves, que pulam de galho em galho ao sabor das condições do tempo. “Vidas Secas”, a propósito, receberia o título de “O Mundo Coberto de Penas”, exatamente por se valer desse argumento. Em detrimento da poesia, a dureza da outra metáfora, mais curta, mais cortante, mais direta e, por assim dizer, mais seca, por óbvio, foi um grande acerto do editor José Olympio (1902-1990), que convenceu o autor com a exposição lógica de que, em o leitor tomando conhecimento acerca do que aludia Ramos à dada altura da novela, seria perda de tempo seguir até o final.

Ainda dando ênfase ao caráter literário — não confundir com “poético” — da obra, Graciliano privilegia o tempo psicológico da narração em vez do meramente cronológico que, de fato, lamentavelmente, não interessa — e continua a não interessar: até hoje, a seca é uma constante na vida do homem sertanejo; até hoje, o Nordeste deságua milhares de retirantes (ainda que o termo reste em desuso) no Sul maravilha; até hoje, mesmo com as bolsas de auxílio assistencial pagas pelos governos, há Fabianos, Sinhás Vitórias, Baleias e filhos mais novos e mais velhos penando pelos sertões Brasil adentro. E em Graciliano se ausentando o quanto pode de maiores interferências — ainda que o enredo seja conduzido em terceira pessoa por um narrador que quase põe palavras na boca dos personagens nas poucas ocasiões em que estas se investem do atrevimento de manifestar opinião, na tentativa mesmo de induzir o leitor a conclusões nem sempre corretas —, o livro cresce.

vidas secas
Vidas Secas, de Graciliano Ramos (Record, 176 páginas)

O distanciamento, talvez até frieza, de Graciliano é o que mais chama a atenção em “Vidas Secas”. À diferença, como se disse, de Guimarães Rosa, Graça refuta a estratégia fácil de pegar o leitor pelos olhos, até porque diferentemente de “Grande Sertão: Veredas”, a história de 1938 se passa num lugar nada sugestivo a elucubrações estéticas. O sertão de Ramos é horrendo, famélico; os meninozinhos, os filhos mais velho e mais novo, têm de se servir do papagaio que Sinhá Vitória mata a fim de resistir mais algum tempo, enquanto Fabiano, entorpecido pela quentura, perambula buscando trabalho. Quatro desgraçados — cinco, se se incluir Baleia, que logo deixa a história —, quatro exilados na própria vida que parecem mesmo condenados a viver e morrer no sertão, sem saber o que é uma coisa ou outra. Numa breve passagem pela civilização, Fabiano, tão deslocado se mostra que sequer consegue tomar parte numa roda de carteado sem levar pancada e ir parar na cadeia. O episódio, à luz do espírito graciliano, pode transcorrer sem maiores sugestões, mas pede que nos detenhamos um pouco. Ramos também sabia o que era ter sido preso, em 1936, devido a seu envolvimento com a Intentona Comunista, a fim de derrubar o governo ditatorial de Getúlio Vargas (1882-1954). Como intelectual de vulto e artista de sensibilidade invulgar que era, sua experiência no cativeiro fora aproveitada na redação original de “Memórias do Cárcere”, que sai do prelo em 1953, postumamente, e inacabado. Já para Fabiano, as grades só serviram para humilhá-lo um pouco mais, para apequená-lo um pouco mais, para lembrá-lo de que seu lugar não era junto aos cidadãos, ao povo da cidade. No decorrer de toda a narrativa, Ramos sujeita à contestação a humanidade de Fabiano e dos filhos, que sequer têm um nome para si, cabendo à figura externamente frágil da mulher a defesa da honra e do valor do clã. Sinhá Vitória — sempre apresentada dessa maneira, com o pronome de tratamento a preceder o nome de batismo, o que poderia configurar o resquício de um berço perdido — é quem carrega os outros três nas costas, é quem mata a fome dos filhos, mesmo à custa do bicho de estimação, é quem toma alguma atitude, da forma que pode. São as mulheres que passam a dominar a paisagem social sertaneja, ou porque os maridos morrem muito antes, ou porque migram sozinhos em busca do eldorado do litoral. Graciliano, ainda que nem houvesse tido a intenção, foi um dos primeiros escritores homens a admitir que o sertão tem alma de mulher, o feijão numa panela repleta de sonhos, mas sonho não enche barriga.

“Vidas Secas” não é um livro sobre a estiagem no Nordeste; “Vidas Secas” é um livro sem adjetivações, é sobre a vida, que em determinado contexto não é tão suave quanto se poderia querer. Graciliano Ramos não estava nem aí para a seca; o velho Graça amava era o homem.