Grande Sertão: Veredas, o livro que descortinou a alma humana e o Brasil profundo

Grande Sertão: Veredas, o livro que descortinou a alma humana e o Brasil profundo

No princípio era o Verbo. Depois o Verbo se faz carne, habita a Terra, e se alastra por sobre a Terra, e domina o coração da humanidade. João Guimarães Rosa (1908-1967), mestre da palavra, era uma multidão num homem só. Formado em medicina em 1930, aos 22 anos, sua obra máxima só vem à luz mais de quarto de século depois, em maio de 1956. Leva-se muito tempo para se vir a ser um médico. Leva-se uma vida inteira para se tentar ser um artista.

O médico vira diplomata, mas o diplomata sempre fora escritor. Como Dante Alighieri (1265-1321), Rosa também se meteu a inventar uma língua própria. Em “Grande Sertão: Veredas”, o autor amalgama gírias, regionalismos, as falas arcaica e moderna, sem nenhum pejo de ferir a susceptibilidade do cânone. A sabedoria do mundo para Rosa é a das gentes dos intestinos do Brasil, todas elas se ajuntando na deserdão das Gerais. Épico e moderno, clássico e revolucionário, “Grande Sertão: Veredas” aborda, como só Guimarães Rosa mesmo seria capaz, o misticismo, o heroísmo, a vilania, a metafísica do homem do campo, do lavrador, do vaqueiro, mas também sua natureza telúrica, em que o chão sagrado das veredas mineiras é o maná do conhecimento mais profundo.

Já no nome de seu protagonista, Rosa faz menção à importância dos recursos naturais, em especial da água, e de sua preservação como condição fundamental para a vida do homem — e o sertanejo, antes de tudo um sábio, tem isso entranhado em sua carne dura. Guimarães Rosa toda a vida foi um visionário, um sujeito que enxergava muitos planaltos à frente de seu tempo, e expunha, entre muitos dos argumentos de “Grande Sertão: Veredas” o caos da vida na Terra patrocinado pelo caráter predatório do gênero humano, ávido por consumir, por destruir, por (des)matar. Riobaldo, ex-jagunço, vai narrando, entre desconfiado e solícito, suas pelejas, seus anseios, seus deleites, suas agruras. E o amor, que tenta a todo custo sufocar, por Diadorim.

Nesse particular, o livro também cresce. Rosa nunca teve medo de polêmicas, falsas ou não, quanto a discorrer sobre a delicadeza do amor entre o que se supunham dois seres do sexo macho. Riobaldo se encanta por Diadorim a despeito de sua condição biológica, hipnotizado pela verdura de seus belos grandes olhos, que refletiam as pradarias e as montanhas das Alterosas. Por óbvio — e nem era essa a intenção —, Riobaldo não se permite consumar esse sentimento. Sequer cogitava como se daria isso, mas o desejo pulsava, bem como na própria Diadorim, sua alma gêmea, que da mesma forma, por mais que lhe doesse, não aquiescia em tratar com ele de certos assuntos. Uma possível investida sexual de Riobaldo contra o companheiro decerto implicaria numa desgraça, o que Rosa sempre que pode faz questão de deixar implícito ao longo da narrativa.

No decorrer de suas quase 600 páginas, “Grande Sertão: Veredas” se assemelha a uma espécie de Bíblia sertaneja. Guimarães Rosa exalta as muitas experiências religiosas possíveis para um homem como Riobaldo. Os jagunços são aferrados à religião, à Igreja, a Cristo, a Nossa Senhora, mas não se envergonham de matar. Rosa, sabedor da dureza da existência em determinadas partes do Brasil, conhecedor da alma humana propriamente, tem pena de seu protagonista. E é essa justamente a sensação que Riobaldo e seus asseclas despertam. Aqueles homens, paridos do baixo do barro do chão, criados como bestas, vendo a vida como feras — ou, senão, já teriam soçobrado —, só poderiam mesmo assumir a persona de faunos do Brasil, seres fantásticos entre divinos e demoníacos que povoam os rincões das selvas rasteiras.

Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (Companhia das Letras, 560 páginas)

Não se pode afirmar com toda a convicção, mas Guimarães Rosa, homem cultíssimo que era — reza a lenda que Rosa, graças às missões diplomáticas que chefiou, ou antes ainda, aprendera a se comunicar com fluência em húngaro, russo, chinês, alemão, inglês, francês, romeno e italiano —, decerto era versado na obra de Simone de Beauvoir (1908-1986) e Jean-Paul Sartre (1905-1980), a corda e a caçamba do existencialismo francês do século 20. Ao estabelecer uma ponte entre a natureza mesma do vivente do sertão e a aridez que perpassa sua trajetória no mundo, o autor remete ao laço entre a essência e a existência e, por extensão, entre o regional e o universal, premissa de que partem outros gênios, a exemplo de Liev Tolstói (1828-1910), Fernando Pessoa (1888-1935) e Marcel Proust (1871-1922). Para Rosa, o homem é seu próprio mundo, o que fez questão de explicitar no trecho que anuncia que “o sertão está dentro da gente”. O experimentalismo da linguagem se reflete no ineditismo do mote do livro, e se dá a apreensão da vida no âmago do território nacional sob outro panorama. Por meio dos nonadas e das tutameias de Rosa, a intelligentsia burguesa de Pindorama passa a conhecer o falar sertanejo, o sofrer sertanejo, as idas e vindas desse povo perdido, esquecido, onde a brisa do Brasil, que tudo beija e balança, não chega. E Rosa o faz com tanta beleza, com tanta poesia, com toda a força da sua verve de beletrista que é impossível não se atribuir a “Grande Sertão: Veredas” a aura de uma das mais relevantes obras de arte já produzidas pelo homem. Da formosura do texto de Rosa, um dos momentos mais sublimes que a literatura brasileira jamais experimentou — e este, definitivamente, é um tempo morto —, emerge um legítimo testamento antropológico do Brasil. Nas descrições rosianas — dos buritis, das minas d’água, das cavalgadas, dos bichos do mato —, se tem um aperitivo do que era a vida sob tais condições. Mago, Guimarães Rosa está para Minas como Ariano Suassuna (1927-2014) para o sertão paraibano, servindo-se das narrativas folclóricas para, brincando com elas, reinventá-las. Riobaldo é o João Grilo de “O Auto da Compadecida”, de 1957, vertido para o universo rosiano, com a alma de ferro de que o mineiro se vale quando necessário, conforme apontou Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). O Brasil continua a ser uma pátria estranha, terra estrangeira mesmo para quem aqui nasceu e de onde nunca tirou o nariz. No eterno país do futuro retratado e detratado na anti-utopia do ácido-romântico Stefan Zweig (1881-1942), Deus e o diabo, o mal e o bem, a verdade e a mentira, mais que se complementam, se irmanam.  É disso que “Grande Sertão: Veredas” trata.