Literatura argentina: para além de Borges e Cortázar

Literatura argentina: para além de Borges e Cortázar

Na República Mundial das Letras, a Argentina tem um representante peso-pesado que inundou o mercado global a partir dos anos 1960. O nome virou uma marca, Jorge Luis Borges, dito o mais universal dos autores argentinos. Para Beatriz Sarlo, no entanto, o autor de “Ficções” e “O Aleph” só poderia ter surgido em seu país, por mais que falasse de coisas distantes no tempo e no espaço. O fato é que, ao mesmo tempo, a borgesmania dá orgulho e ofusca o restante da produção literária de uma cultura riquíssima.

O reinado de Borges teve a figura coadjuvante em Julio Cortázar, que escreveu o romance “Jogo da Amarelinha”. Ambos reinaram praticamente sozinhos até o final dos anos 1970, quando surgem para o mercado internacional Ricardo Piglia e Juan José Saer. Os dois escritores foram mistos de ficcionistas, professores universitários e ensaístas brilhantes que criaram livros de extrema inteligência e reputação. Contemporânea a eles, havia a crítica literária e cultural Beatriz Sarlo, dando um selo de garantia a essa geração.

O que veio depois dos gigantes intelectuais, ficou pouco conhecido fora do campo cultural argentino. É como se bastassem os nomes próprios dos quatros escritores citados acima. Até quem viveu na mesma época, acabou mais na sombra em termos internacionais: as irmãs Ocampo, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato, Alejandra Pizarnik e lendas como Macedonio Fernández. Além desses nomes consagrados, há uma geração intermediária já consagrada e novos autores e autoras que merecem ser mais conhecidos.

Martin Kohan l Foto: Casa das Rosas / Divulgação

César Aira (nascido em 1949) é, sem dúvida, o escritor argentino mais festejado e cultuado. Entre seus leitores famosos, está a cantora Patti Smith (que prefaciou a edição americana de “O Divórcio”). O que mais chama a atenção, é a produção frenética de Aira, que chega a publicar quatro livros por ano. As obras são curtas e tem sofisticação grande ao misturar erudição estética e tramas muito bem construídas. No Brasil, saíram narrativas como “Os Fantasmas” e “Como me Tornei uma Freira”.

Uma boa iniciação em Aira é o romance “Noites de Flores” (2004). No livro, um casal de idosos perde tudo na crise financeira de 2001 e passa a trabalhar em delivery de pizzas. Detalhe: como não tem dinheiro, eles fazem o serviço a pé no bairro de Flores, na grande Buenos Aires. A narrativa começa em tom realista e descamba ao final para uma distopia, um cyberpunk, muito elaborado para mostrar o absurdo da situação. Aira pensou nessa catástrofe bem antes de surgir o trabalho precário dos aplicativos de entrega.

Da nova geração, o veterano é Martin Kohan (nascido em 1967). Aqui temos um pensador radical e grande narrador que faz a ponte da geração Piglia com a produção recente. No mercado brasileiro, saiu primeiramente o romance “Duas Vezes Junho” (2002), que tem uma história horripilante em plena Copa do Mundo de Futebol de 1978. Soldados discutem com qual idade se pode começar a torturar um bebê. O cenário é um presídio na época dos anos de chumbo na Argentina, com o tema dos desaparecidos políticos.

Nova literatura

Assim como se teve Beatriz Sarlo para pensar a geração de Piglia e Saer, a nova literatura encontrou seu intérprete maior em Damián Tabarovsky. Ele também veste a camisa de romancista e peça-chave da editora Mardulce. Seus ensaios se ancoram na defesa radical dos experimentos com a linguagem e na crítica à produção literária que narra a experiência da ditadura argentina. Para ele, o tema de memória política está esgotado. Seu livro “Literatura de Esquerda”, editado no Brasil, é excelente e inquieta o leitor.

Damián Tabarovsky l Foto: La Tercera / Divulgação

Com sua verve polêmica e erudita, Tabarovsky criou o seu “cânone” de novos autores e autoras da Argentina. Trata-se de um guia bem embasado para ver o que existe de bom e relevante por lá. Em um ensaio, ele listou os nomes de Selva Almada, Hernán Ronsino, Pablo Katchadjian, Ariana Harwicz, Emílio Jurado Naón e Oliverio Coelho. A estes, eu agregaria as escritoras Samanta Schweblin e Pola Oloixarac, que tiveram seus livros editados no Brasil e foram estudadas em teses acadêmicas pelo mundo afora.

“O Vento que Arrasa” (2012), de Selva Almada, recorre ao tema clássico da espera. No interior da Argentina, os personagens Reverendo Pearson e sua filha Leni param numa oficina de beira de estrada. Enquanto o carro não fica pronto, os dois convivem e dialogam com o mecânico Brauer e seu filho Tapioca. Numa situação banal, Almada consegue concentrar os dramas do mundo inteiro, sobretudo questões religiosas, e a realidade de um pedacinho da Argentina no meio do nada, literalmente.

A nova literatura da Argentina não teme ambientar suas histórias no interior do país, o mítico “campo”. Não existe sinal de “costumbrismo”, equivalente ao pitoresco do antigo regionalismo no Brasil. O romance “Distância de Resgate” (2014), de Samanta Schweblin, é bem representativo dessa tendência e inova ao trazer a catástrofe ambiental para o “campo” argentino. A trama gira em torno de conflito natureza e tecnologia, tendo no centro da história o envenenamento por produtos químicos e soja transgênica.

Samanta Schweblin l Foto: Man Booker / Divulgação

Schweblin (nascida em 1978) mereceu elogios do peruano Mario Vargas Llosa, e seu livro será adaptado para o cinema pela Netflix com o título de “Fever Dream”. É como se um escritor brasileiro decidisse mergulhar no lado “B” do louvado agronegócio e saísse de lá com uma narrativa distópica. Matéria-prima é o que não falta no Brasil, porém a literatura nacional parece ter dois tabus: não fala mal de bancos e do agronegócio (com exceção de Itamar Vieira Junior em “Torto Arado”).

Ainda no ambiente do “campo”, Hernán Ronsino (nascido em 1974) narra no romance “Glaxo” (2009) a derrocada argentina como nação. A pequena cidade (o “pueblo” com seus mistérios), a fábrica em decadência que dá o título do livro, as memórias da violência histórica. A narrativa faz o vai-e-vem pelos anos de 1959, 1966, 1973 e 1984, elaborando fios da meada. Editado no Brasil, “Glaxo” faz parte de uma trilogia ao lado dos romances “Lumbre” e “La Decomposición”.  

Pola Oloixarac l Foto: Pola Oloixarac / Divulgação

A experimentação estética aparece em “Liberdade Total” (2013), de Pablo Katchadjian (nascido em 1977), também lançado no mercado brasileiro. O leitor está diante de uma narrativa herdada, sem dúvida, do universo de Samuel Beckett, seus silêncios e absurdos. Os personagens são identificados apenas pelas letras A, B, C, D, E e F. Pode ser romance, teatro, fábula, ficção científica, distopia, ou tudo isso ao mesmo tempo. É algo indefinível, como são os textos de Borges que jamais se deixam rotular.

No ambiente das experimentações, Pola Oloixarac (nascida em 1977) causou sensação ao lançar “As Teorias Selvagens” (2008). O mundo dos blogs recriado pela escritora entra para o ambiente culto de acadêmicos. Sarlo e Piglia saudaram na época o romance, uma novidade num meio cultural argentino que gosta de cultivar a imagem da “tradição vanguardista” e o tom solene literário. Nada a ver com a imaginação à solta de Borges e Cortázar, que, penso eu, se sentiriam bem na nova literatura argentina.