Rosetta Tharpe: a mulher que inventou o rock

Rosetta Tharpe: a mulher que inventou o rock

O que poderia se esperar de uma mulher negra, descendente de escravos e, claro, pobre nos Estados Unidos dos anos 1930? De uma mulher sem atributos que lhe garantissem algum destaque, muito pouco. De Rosetta Nubin, que conquistasse o mundo. A Madrinha do Rock nasceu em 20 de março de 1915, sem nem um pouco do glamour que viria a se tornar sua vida. Filha de Katie Bell Nubin, uma colhedora de algodão em Cotton Plant, no Arkansas, estado americano famoso por conduzir com mãos de ferro a política de segregação racial, a menina frequentava os cultos na Igreja de Deus em Cristo na companhia da mãe, uma fiel vigorosa, até se mudarem para a feérica Chicago em busca de melhores condições de vida. Rosetta contava então seis anos.

Na nova cidade, Katie continuou a tomar parte nas celebrações religiosas de sua igreja e logo vislumbrou na filha o pendor para a música. E acertara: Rosetta desde logo deixou claro a que viera. Dona de um carisma magnético, a garota se apresentava nas diversas congregações da vizinhança, sempre atraindo todos os olhares, graças à sua personalidade espontânea. Desenvolveu o dom de compor e tocava guitarra e piano, alternando os instrumentos enquanto cantava. O público, evidentemente, ficava em êxtase.

Chicago testemunhava como poucos lugares na face da Terra a efusão artística por meio da música. Os mais variados gêneros sentavam-se à mesma mesa sem a menor cerimônia. Blues e jazz viravam uma coisa só, numa batida ora sincopada, ora com uma cadência mais maviosa, e Rosetta Tharpe, artista sensível de formação puramente intuitiva — e, por isso, bastante aguçada — percebeu o que estava acontecendo. Já mulher feita e separada do marido, o pastor Thomas Thorpe — o Tharpe com “a” se deve a um tabelião desatento —, com quem se casara aos 19 anos, em 1934, ela deixa Chicago rumo a Nova York. Na Big Apple, não foi difícil se enturmar entre os grandes do Cotton Club, o dancing mais badalado do pedaço, e, de quebra, passar a integrar o elenco: Cab Calloway, Count Basie, Billie Holliday, todos dividiam o camarim com ela. No Cotton, aquela história de “só para brancos” era do palco para baixo. Diante dos holofotes do night club — e por trás dos aparelhos de rádio —, eram os negros quem davam o tom.

Rosetta não queria abandonar o público que a acompanhava entoar hinos nos templos, uma audiência que nada tinha a ver com a do Cotton Club e das muitas outras casas noturnas que lotavam para prestigiá-la. Sua verve gospel estava enraizada demais em sua alma para que ela a extirpasse assim, e o que poderia ter sido um dilema intransponível se converteu, na verdade, na afirmação de um estilo. Continuou a soltar o gogó em eventos religiosos, mas juntando a ele a potência das big bands da boemia nova-iorquina. Sua trajetória profissional estava prestes a dar um solavanco, e aos 23 anos, gravava seu primeiro disco com inspiração nos cânticos que entoava ainda menina no Arkansas. “The Lonesome Road”, “Rock me”, “My Man and I” e “That’s All” se tornaram sucessos instantâneos.

Rosetta foi uma das poucas cantoras a conseguir licença para realizar apresentações durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Era a favorita dos soldados negros, e nesse cenário gravou, em 1944, “Strange Things Happening Every Day”, tido por muitos críticos como o primeiro registro de um rock’n’roll como o conhecemos hoje.

Numa época pautada pelo preconceito racial e ultraconservadorismo, Sister Rosetta fazia suas próprias leis. Ganhou tanto dinheiro que poderia comprar um Arkansas só para ela; não se intimidava com a pretensa superioridade de artistas brancos — todos homens — que se atrevessem a subjugá-la e botou pra quebrar algumas vezes. Namorou muito, não se atendo ao gênero de quem lhe acendesse a libido, e voltou a se casar, dessa vez com Russel Morrison, numa cerimônia com todas as excentricidades que poderiam caber a uma estrela da sua magnitude.

A vida mundana e a relação umbilical com a igreja foi uma tônica em sua vida. Rosetta parecia ter fundado uma espécie de religião própria, em que brancos e negros se irmanavam em busca da ascese que o canto da Madrinha proporcionava. A nova geração de artistas que vieram a reboque de sua autenticidade e rebeldia com todas as causas estava sempre de olho no que a veterana aprontava. Chuck Berry, Elvis, Jerry Lee Lewis e uma verdadeira leva de neófitos beberam da água de Sister Rosetta e o resto é história.

A ligação íntima com a mãe também permaneceu por toda a vida e quando Katie Nubin morrera, em 1963, Rosetta não pôde evitar a depressão implacável que se abateu sobre ela. Diabética, foi se entregando à doença, ao ponto de ter de amputar uma perna, o que terminou por levá-la a outras complicações de saúde. Em 1973, contando apenas 58 anos, Rosetta Tharpe foi cantar noutra freguesia.

A Madrinha do Rock nunca deixou de ser lembrada e ganhou um dia só seu: 11 de janeiro é o Dia de Sister Rosetta Tharpe, feriado na Pensilvânia. Juntamente com o Dia do Rock, celebrado em 13 de julho, é uma das datas a serem festejadas pelos muitos admiradores, de Rosetta e do ritmo que melhor incorpora a sede de liberdade que o espírito humano está sempre exigindo. Ainda que a fonte às vezes pareça ter secado faz muito tempo.