Dostoiévski é a prova de que há salvação para o homem. Até o último instante

Dostoiévski é a prova de que há salvação para o homem. Até o último instante

A loucura sempre permeou a humanidade. O homem vai perdendo a razão aos poucos, incapaz frente aos muitos desafios que a vida lhe impõe, ou o desatino o colhe de uma vez, consequência de muitos anos de uma existência fracassada. Fiódor Dostoiévski (1821-1881) não chegou a enlouquecer, mas esteve parede a parede com a insanidade. O russo, autor de obras-primas da literatura universal, era um homem descrente do gênero humano, e era muito controversa a suposta conversão do escritor a um possível amor por tudo e por todos.

Entretanto, tomando-se “O Sonho de um Homem Ridículo” isoladamente pode-se acreditar mesmo nessa pretensa mudança de vida — e de ideias — de Dostoiévski. O conto, publicado em 1877, narra a história de um homem desacoroçoado, desesperançoso, perdido, tão insignificante que o autor sequer deu-se ao trabalho de dar-lhe um nome. Esse homem vaga pelas ruas mal iluminadas de uma São Petersburgo fustigada por um inverno que não tem clemência. O sujeito se deixa tomar por pensamentos monomaníacos de impotência e morte, o que já não lhe diz mais nada: ele era irremediavelmente um homem sem nenhuma importância, nem para os outros nem para si mesmo. Um homem ridículo.

No começo da obra, a índole niilista de Dostoiévski resta intacta. Ao se analisar a postura do homem ridículo e o cenário em que se encontra — deambulando pelas vielas de uma grande cidade no inverno, a horas mortas, possivelmente alta madrugada — é inevitável pensar que seu desejo já fosse mesmo o que se configura a seguir, sendo incoerente a continuação da narrativa. Mas Dostoiévski tinha muito mais a dizer.

O personagem persevera em sua longa jornada rumo à autodestruição, dando um passo de cada vez. Ao contemplar o firmamento por um segundo, avista uma estrela, cujo brilho o fascina de uma maneira peculiar. O sujeito tem uma espécie de revelação diabólica e se convence de que o mais digno a fazer é levar a termo a resolução que lhe ocorrera há algum tempo. Deve disparar uma bala contra a própria cabeça ainda antes que a noite acabe, usando o belo revólver novo, o que daria uma aura mais solene ao feito. Enquanto lhe assaltava o devaneio, sente que lhe puxam a manga do capote: uma menina precisa de ajuda para salvar a mãe. O apelo da garota não surte efeito, visto que está decidido a acabar com tudo.

À medida que avança em seu relato, Dostoiévski deixa mais explícita a dubiedade do homem. Está dominado por ideias nefastas, mas encontra tempo — e ânimo — para admirar as estrelas e disso lhe advém a ideia de dar cabo da própria vida. Aflora o misticismo dostoievskiano, presente em circunstâncias bastante específicas, como ao falar das crenças e rituais dos mujiques em livros a exemplo de “O Idiota” e “Os Irmãos Karamázov”, mas presente mesmo assim, ao contrário de seu contemporâneo e “rival” Liev Tolstói (1828-1910), um cético aferrado que começou a se desdizer depois de velho e tornara-se mesmo um fanático. É curiosa a aparição da garota, como se a estrela cujo fulgor o embevecia tivesse lhe caído sobre a cabeça, a fim de que recobrasse o juízo. Ou poderia ser, aludindo à religiosidade, um anjo, um anjo caído. O anjo caído mais célebre de que se tem notícia é Lúcifer, “o que fugiu da Luz”. Dostoiévski pode ter querido dizer que o próprio diabo o impelia à morte e que o argumento usado pela garota, de que a mãe estava em apuros, fosse, em verdade, um estratagema para ganhar sua alma. Em ele não cedendo, não condenou-se, mas estava longe de abandonar o ímpeto suicida, ainda que arrefecesse nele a negação da existência, dada sua reflexão acerca do que ocorrera. Não poderia mais se considerar um desesperado, já que, ao chegar em casa, com o cano da arma mirando sua têmpora direita, não conseguia esquecer a agonia da pequena. Tinha-lhe dó. Estava irrefutavelmente salvo.

Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil e o Sonho de um Homem Ridículo (Editora 34, 128 páginas)

A gravidade da descoberta o abala de tal forma que, subitamente exausto, adormece, o revólver ainda na mão. O talento literário de Dostoiévski poderia ser posto à prova nos trechos que se sucedem a partir do sonho, mas seu gênio, sua visão arrojada, sua natureza visionária prevalecem. No seu inconsciente, ele tinha mesmo se entregado ao maior dos pecados, assenhoreado que estava pelo desespero. Havia se dado um tiro, não na cabeça, mas no peito, e continuava a sentir o mundo como se vivo ainda estivesse, ao ponto de se incomodar com a chuva que o encharca na sepultura, na qual não permanece por muito tempo. Uma criatura não-humana o remove do túmulo e o conduz numa viagem a outra civilização na qual não se conhece a tristeza e todos amam a vida e prezam-na. Ninguém questiona nada nem procura sentido para a vida: viver é o próprio sentido da vida. Eram felizes a ponto de prescindirem da comunicação, se depreendendo daí que o homem só se comunica porque é infeliz. Não suporta o silêncio porque ali está a razão de tudo, inclusive do sofrimento e da tristeza.

O homem ridículo se integra a esse lugar mágico da forma que lhe permite sua natureza. Passa a ensinar a seus habitantes as coisas que eles não conhecem, como a necessidade da mentira para se conservar os vínculos sociais. A partir de então, toda a virtude que pudesse haver no autoisolamento entre aqueles indivíduos não resiste à avalanche de pecados advinda da novidade e o suposto paraíso fenece. Maus sentimentos ansiaram para que se criasse ideias como misericórdia, fraternidade, humanidade; o crime deu origem à necessidade de justiça e, para que houvesse justiça, leis precisavam existir. Como nem todos cumpririam a lei, uma vez que se tinham permitido corromper e eram agora perversos, seriam fundamentais instrumentos como a cadeia e, se a vileza do crime fosse tão acachapante, a guilhotina também deveria ser adotada.

Dostoiévski discute a utilidade de valores caros à civilização, como religião e justiça. Na passagem em que descreve o personagem sentindo as gotas de chuva a empapá-lo dentro do caixão, depois de sepultado, o autor insinua a ignomínia de seu ato final; estaria condenado a permanecer ali, nem vivo nem morto, se sujeitando à pena mais aterradora e humilhante. Até que uma espécie de entidade superior o liberta, o encaminha a um novo mundo e, mesmo assim, o homem ridículo não se emenda e perverte tudo. É nítida a intenção de Dostoiévski quanto a assegurar que o gênero humano nunca está completamente perdido, ainda que numa situação de profundo opróbrio como a que se encontrava o personagem, ao mesmo tempo em que alude à natureza maligna do homem que, tendo conquistado a redenção, a expiação de todos os seus pecados por Deus — inclusive o maior deles, o da falta de esperança —, e recebido a graça de deixar este mundo e ir habitar um lugar imaculado, põe tudo a perder e introduz o pecado nesse lugar. Como num “Gênesis” às avessas, Deus o toma pela mão e o guia rumo ao paraíso, do qual ele mesmo se expulsa. Também desaba o conceito de uma justiça infalível e redentora, que assumiria o lugar de Deus, afastando o homem do pecado à custa de cadeia e morte, visto que o homem, indiferente às ameaças, continuava a pecar.

A novela termina com o homem ridículo livre, afinal, do niilismo que o envenenava, agora, sim, inclinado a abraçar outra vida. Sua primeira resolução é sair à rua e provocar a menina que desprezara, a fim de se desculpar com ela e ajudá-la, se não for tarde demais. Dostoiévski dá o seu recado: o que o homem desliga na Terra, desliga também no Céu. A possível acepção moralista da obra pode ser atribuída à perseguição a que o autor fora submetido pelo Império russo. Levado ao paredão, escapou por pouco do fuzilamento, graças à magnanimidade cínica do czar, que exigiu que renunciasse a suas convicções e escrevesse livros “edificantes”. O trauma certamente abalou para sempre o espírito livre e sensível do homem de gênio que, aos trancos e barrancos, sobreviveu. Dostoiévski é a prova de que há salvação para o homem. Até o último instante.