Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski: tão desconhecido quanto genial

Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski: tão desconhecido quanto genial

Em 1864, um inverno rigoroso assolava Moscou. Seria mais um de muitos na quase sempre gélida capital russa, não fosse pelo fato de que Fiódor Dostoiévski (1821-1881) precisava se desdobrar entre os cuidados com a mulher, que morria de tuberculose, e o esmero com que se debruçava sobre seu novo trabalho, uma ode à vida, à beleza do viver, às incongruências de um homem frustrado, que se retira do serviço público — atividade a que se dedicava apenas para ter o que comer — e vai morar num cubículo, num bairro afastado da cidade, e mesmo assim enfrentando apuros de dinheiro.

Tudo nele — e no próprio Dostoiévski, como se vai ver — é dúvida. Dostoiévski talvez seja dos escritores mais aferrados à dúvida de que se tem conhecimento. Em “Memórias do Subsolo”, o livro em questão, por meio desse protagonista, agoniado, desprotegido, desacorçoado, Dostoiévski encarna a dúvida de tudo, inclusive das certezas, ou melhor, principalmente das certezas. O personagem tão irrelevante, tão pequeno e apequenado que nem merece ter recebido um nome, é instável, como todos os tipos de Dostoiévski, mas um homem de inteligência invulgar, capaz de conduzir o leitor por um labirinto de pensamentos que ele faz parecer completamente irrefutáveis só para, logo, a seguir, botá-los todos à prova. “Memórias do Subsolo” é o romance de formação de Dostoiévski, superando os imprescindíveis “O Idiota” e “Os Irmãos Karamázov”, justamente por introduzir o público no universo de seu autor. Por meio de “Memórias” é que o leitor vai começar a ter alguma ideia do quão fundo é o buraco existencial dostoievskiano.

É bem provável que tenha sido o novelista americano William Faulkner (1897-1962) a definir com maior exatidão o russo. Para Faulkner, Dostoiévski era como o vagalume, que ilumina muito pouco quando pisca, mas cuja pequena luz torna visível a imensa escuridão de que está cercado o homem. Nessa pouca claridade, o menor dos livros de Dostoiévski, o autor escreve páginas que funcionam como um farol sobre a complexidade do espírito do homem. “Memórias do Subsolo” se propõe a guiar quem o lê ao mais longe de sua alma, do ponto de vista moral, psicológico e filosófico. Um livro fundamental, portanto.

O livro encampa o paradoxo entre a vida como ela se apresenta e a vida como ela deveria ser. À medida que o homem conquista coisas, mais coisas anseia por conquistar. Todo pontuado pela mística religiosa, a obra aborda a necessidade do homem se convencer de que a única coisa que pode ser mesmo sua é a alma, e que, para possui-la verdadeiramente, é preciso observar a religião, mudar de vida, se converter — e nunca pensar que o processo está findo. A visão de mundo de Dostoiévski se aproxima muito à de São Paulo de Tarso, antes Saulo, que precisou cair do cavalo a caminho de Damasco, na Síria, e ficar cego por algum tempo, a fim de ver que precisava de Deus. “Tudo posso, mas nem tudo me convém”, o ensinamento máximo do apóstolo, parece ter sido o lema de vida de Dostoiévski, em especial depois de acontecimentos trágicos e dramáticos, que teimavam em lhe suceder.

“Todo aquele que vive mais de quarenta anos é um canalha. Posso dizê-lo porque também eu hei de viver sessenta, setenta, oitenta”, diz Dostoiévski pela boca de seu personagem principal logo na primeira parte da história. Ele viveu quase sessenta, se equilibrando entre suas muitas suspeitas e em disfarçá-las o máximo que pudesse, ao menos no seu círculo social, a fim de sobreviver. A literatura era para Dostoiévski muito mais do que um ganha-pão prazeroso; por meio do que escrevia, Dostoiévski exorcizava seus fantasmas, queimava suas bruxas e, claro, desconstruía suas próprias certezas. “Memórias do Subsolo” mesmo é todo sedimentado sobre pseudocertezas, falsas redenções, que ficam oscilando num vaivém de impressões trocadas entre autor e leitor — sendo que Dostoiévski não faz questão de esclarecer coisa alguma, muito menos de cara.

Dostoiévski, contudo, humanista que é, não nos deixa soçobrar no mar do questionamento. Fica premente em se chegando à segunda parte do livro sua porção filósofo, que pergunta, mas igualmente responde e, melhor, suscita novas meditações sobre o que está sendo dito. A esperança é uma vã quimera para Dostoiévski. Ninguém pode esperar da vida coisa alguma, muito menos conhecer o mistério por trás de cada coisa. Dostoiévski brinca com esses dois conceitos, quais sejam, a avidez humana por sabedoria e o quão deslocado o homem está num mundo que, na verdade, não conhece — nem vai conhecer jamais. Nunca se sabe com qual dos dois quer nos atacar.

Mikhail Bakhtin (1895-1975) talvez tenha sido o intelectual que mais próximo chegou de conhecer Dostoiévski, não se sabe se porque russo também, ou por igualmente ter ido parar na cadeia por “crime” de opinião. Em seu “Problemas da Poética de Dostoiévski”, o filósofo e linguista defende um aspecto importante em “Memórias do Subsolo”: as muitas naturezas que constituem a alma do homem, conceito definido por ele como polifonia. Para Bakhtin, considerar o homem a reprodução da imagem de Deus é que é a verdadeira heresia. O homem poderia ser tomado como uma criatura à semelhança divina por sua polifonia, isto é, uma algaravia de vozes dissonantes berrando num espírito irrequieto, sem se importar com o que seria certo nem errado, apenas levantando e derrubando hipóteses, tentando se manter vivo no mundo, um lugar hostil e limitado demais, para ao fim de tudo, poder habitar o Reino dos Céus. Se merecer.

O herói, ou melhor, o anti-herói, de “Memórias do Subsolo” é um ressentido, um ser maltratado pela vida que foi se refugiar numa cloaca, sem, entretanto, abdicar de suas ilusões. Nenhum dos tipos de Dostoiévski é nunca uma coisa só, e com este não é diferente. O personagem nos provoca dó, nos fomenta uma revolta por sua condição, mas também asco. Dostoiévski o faz de caso pensado: quer com isso nos jogar em rosto nossa própria hipocrisia, confrontar a inconsistência de nossas reações e sentimentos, sempre visando à coroação da suspeita e o expurgo do racionalismo. Para ele, o leitor deve se aferrar é à dúvida, como um mendigo a um prato de sopa numa noite fria de inverno.

A figura do funcionário público aposentado, o sujeito medíocre que odiava seu ofício, é certeira quanto a causar no público o sentimento constante de que o mundo é um imenso pântano, lodoso, repugnante, movediço, em que é loucura se tentar construir qualquer coisa de verdadeiramente sólido. O autor-personagem, de uma repulsa admirável, nos seduz por ser tão realista em sua narrativa cheia de metáforas, como quando alude ao Palácio de Cristal — o ideal de socialismo perfeito, delírio de todo o povo russo, que só serviu de fundamento para arbítrio, miséria, perseguições e morte.

Em dado momento da trama, no tomo “A propósito da neve molhada”, vem à tona Lisa, uma jovem prostituta, contra quem o personagem mostra a crueldade que represara por toda uma vida. O infeliz passara quarenta anos, como é dito na primeira parte, enganado, mas seu consolo é provar que assim acontece com todos: somos todos ludibriados pela vida, preterindo a realidade pelas divagações, porque divagando não se sofre.

Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski (Tradução de Boris Schnaiderman, Editora 34, 52 páginas)

“Memórias do Subsolo” foi recebido sem entusiasmo pelo público. Todo cercado pelo melhor da filosofia, a ponto de ser tomado por ter sido escrito por Nietzsche (1845-1900), um livro tão pleno dos sentimentos mais característicos da contraditória alma humana não se tornou conhecido junto à sociedade da época. Bóris Schnaiderman (1917-2016), tradutor de Dostoiévski para o português, inteligentemente lembra num dos prefácios que assinou que “os contemporâneos muitas vezes são os piores intérpretes de uma obra”. E é a mais aterradora verdade, haja vista a identificação do enredo e seus personagens com o século 20, um período de inconstância, quebra do estabelecido, imposição das incertezas, do avanço das ideologias marxistas, de um lado, e do imperialismo e liberalismo econômico, do outro. Dostoiévski era mesmo um gênio, um homem muito à frente do tempo em que viveu.

Em “Memórias”, resta cabal a incapacidade do homem quanto a entender a realidade tomando por base a percepção de suas próprias contradições. O homem, agarrado que está a uma pálida ideia de certeza, vocifera, tentando a todo custo defender seus frouxos argumentos a respeito de qualquer asnice. O homem não admite sempre levar uma rasteira da realidade, muito menos ser toda a vida colocado diante da tacanheza de suas ambições, o que lhe provoca ainda mais sofrimento.

“Memórias do Subsolo” é revolucionário ao provar que a vida do homem, tudo o que pensa ou sente é ilusório, sempre se valendo da premissa da dúvida. Em manifestando ideias e sensações meramente fantasiosas, o homem sofre e peca, mas só o faz porque não compreende sua própria alma. Essa incompreensão advém do fato de que não vai até lá, e não vai porque sua pequenez o impede. Eis o paradoxo dostoievskiano: ou o homem se conhece ou está fadado a repetir seus erros mais comezinhos ad aeternum. Somente se conhecendo, o homem é capaz de conhecer também a sociedade em que está inserido, identificar que condutas tomar ou não e decidir entre escapar da irrelevância ou se tornar um pária.

O homem não pode se conformar com a segunda alternativa e passar a vida se lamuriando. Aqui, a religião volta a pontuar a narrativa com mais força quando Dostoiévski desvela sua face perniciosa, que daria ao homem as desculpas de que sempre precisou para justificar sua tibieza. A religião molda o caráter do homem, para o bem ou para o mal. Por meio dela, conhecemos as primeiras noções acerca de virtude, pecado, bondade, perversão, salvação, danação eterna — e sua importância para evitar a última. Daí a natureza opressora (e perigosa) que pode adquirir.

Dostoiévski foi um homem dado a paixões e cheio de ímpetos. O hábito de ler em voz alta textos de teor niilista, materialista e de natureza iconoclasta em geral acabou por trai-lo. Em 23 de abril de 1849, ele foi encarcerado e posteriormente conduzido à fortaleza de São Pedro e São Paulo. No fim do ano, recebeu a pena capital por fuzilamento; só teve a punição anulada na undécima hora por um ato de indulgência do czar, mas foi condenado a quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria. Providência divina? Seria melhor ter sido fuzilado do que se submetido ao arbítrio do Estado, condenado ainda assim? A única vantagem do isolamento siberiano para Dostoiévski foi ter tido a quietude necessária para aprofundar seu contato com Santo Agostinho, Platão, Shakespeare, entre outros grandes como ele, arriscando-se a um castigo qualquer, porque não se podia ler na prisão.

A reclusão numa cela certamente teve também o condão de reforçar no autor a crença na falta de sentido da condição humana, que ao homem só resta, como Sísifo, empurrar uma pedra até o alto de uma montanha só para, ao fim do esforço, vê-la rolar outra vez, fiando-se no princípio cristão da transformação pelo sofrimento e, tendo muito claro que negar a esperança não é uma opção. A vida não faz o menor sentido e apenas nós mesmos podemos dar algum senso de razoabilidade à vida, sendo cada um responsável por identificar do que sua própria existência carece. Por sua vez, a falta de esperança, à luz do cristianismo, é o maior pecado que o homem pode cometer, para o qual não há hipótese de absolvição.

O homem do subsolo, presente em todo indivíduo, é, para Dostoiévski, o ponto mais importante da alma humana por fazê-lo desafiar a própria razão, desconfiar das próprias certezas, e procurar um sentido nas coisas sem descanso, até sua morte. Cada indivíduo tem em si seu homem do subsolo, que habita uma região que só ele pode acessar. É lá que está escondida a tão buscada verdade da vida.

Conforme avançava seu tempo sob custódia do Estado, Dostoiévski foi sendo capaz de chegar a essa parte obscura de si mesmo. Conseguiu ler o Corão, Vico, Kant, Hegel. Descobriu que o interesse pela religião era uma fonte inesgotável e que às vezes só se percebe o caminho depois de finda a jornada. A sólida formação filosófica de Dostoiévski o habilitou a escrever “Os Irmãos Karamázov”, sem dúvida sua obra máxima, sem o privar da sensibilidade para a redação de “Memórias do Subsolo”. A religião é a origem primeira de toda sede de conhecimento humano; a partir dela, o homem busca outros caminhos, outras possibilidades quanto a entender seu lugar no mundo, ideias que, não raro, terminam por contradizer a própria religião. O desejo humano por sabedoria, por iluminação, sua crescente insatisfação e mesmo desconfiança do ente supremo que o teria criado suscita no homem o sentimento de uma espécie de infidelidade a esse ente supremo, ao próprio Deus, portanto. O homem que questiona, o homem que pensa, é um traidor de Deus, o que se pode provar por meio das próprias Escrituras, vide Adão e Eva, o casal caído em desgraça do bíblico “Gênesis”.

Todo escritor fala de si mesmo, em maior ou menor medida, seja lá a que contexto esteja se referindo a narrativa. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) argumenta que toda obra de ficção é autobiográfica, e em Dostoiévski isso não é diferente, muito pelo contrário. Dostoiévski só consegue escrever acerca do que passou, e vai além: o autor de “Memórias do Subsolo” se julgaria um hipócrita, um biltre, um farsante, se defendesse conceitos, princípios ou mesmo personagens em que não tivesse uma assentada e profunda crença.

Bakhtin, por sua vez, demonstra que Dostoiévski não admite noções cristalizadas em seus romances, mas discute com seus personagens, valoriza e estimula críticas, quiçá o primeiro a fazê-lo com tal vitalidade, podendo ser considerado o pai do romance de ideias. O autor é mestre, sobretudo em “Memórias do Subsolo”, em seduzir seu público, deixá-lo zonzo com suas circunvoluções retóricas, sua verve de contestar tudo e seu total domínio da palavra.

O gênio indomável de Dostoiévski nunca apresenta tipos acabados, definitivos; antes chama o leitor a descobri-los consigo, sempre procurando valorizar os anti-heróis, ainda que mantenha certo distanciamento da contenda. Para Dostoiévski, só pode ser chamado de nobre aquele que domina suas paixões, seus instintos, seus medos, na intenção de deixar a marca de seu espírito livre, sempre apto a combater a boçalidade dos tiranos e se indignar frente às injustiças que a sociedade se empenha em perpetuar. Há que se tirar Dostoiévski do subsolo.