Entrevista com Endauro Rebouças, serial killer gramatical

Entrevista com Endauro Rebouças, serial killer gramatical

O assassino em série gramatical Endauro Rebouças, 26, cumpre a maioria dos pré-requisitos para o perfil criminal em questão: personalidade fragmentada pela ausência da figura paterna (que sempre foi sujeito indeterminado), mãe dominadora (que o fazia tomar sopa de letrinhas de cor e salteado) e índole fanática (afirma ouvir vozes verbais ativas, passivas e reflexivas que o induzem ao crime), só ataca elementos gramaticais femininos: regências, desinências, preposições — e sempre, segundo ele, “com propósito purificador”, seguindo um padrão todo peculiar: espiona as vítimas como sujeito oculto e as ataca recitando desvairadamente orações coordenadas assindéticas.

Preso em flagrante há dois meses, ao tentar violar uma regra de concordância, Rebouças nos concedeu — depois de inúmeras negociações — a seguinte entrevista:

Esta tendência é manifesta desde quando?

Desde a infância, na escola. Levei bomba várias vezes só pelo prazer de assassinar a Gramática em série. No caso, a sétima série, que fiz oito vezes. (Ajeita o cabelo) E agora voltou com força total, quando comecei a frequentar redes sociais. Não há meio mais seguro para assassinatos gramaticais.

Como seria este “propósito purificador”, que você alega como indutor dos crimes?

Fica só entre nós três — eu e você —, mas na verdade vim salvar a Gramática. Ao invés de manter-se restrita à pudicícia das bibliotecas ela caiu na boca do povo: daí à vulgarização foi um pulo. Transformando pois a língua portuguesa em língua morta eu contribuo para disseminar esse outro dialeto indescritível que toma conta dos jornais, da televisão e da internet. (Assume entonação messiânica) Desta forma ele acabará virando o idioma oficial do país, e a Gramática pura retornará à castidade das estantes de biblioteca, de onde nunca deveria ter saído.

Existe algum desvio de conduta em sua família? Algum antecedente?

Sim. Minha mãe garante que meu pai era um número ordinal.

A frieza de seus métodos chocou a opinião pública. Como era seu modus operandi?

(Sem demonstrar emoção alguma) Eu variava: às vezes amputava com precisão cirúrgica a crase das preposições, ou fazia o contrário: assediava uma letra e introduzia nela uma crase indevida até o fim. Houve vezes em que imobilizei as sílabas e as separei indiscriminadamente com hífens cortantes. Gostava também de abreviar a vida das formas pronominais. Já viu como o “vc” se popularizou? É marca registrada minha. Ah, e não podia ver passar as normas de estilo. Aquela pose aristocrática me deixava louco. Era ver uma norma e eu já afiava minha cedilha.

E você tentava conjunção com suas vítimas?

(Acabrunhado) Não. Minha relação com elas era apenas verbo-nominal. (Ajeita novamente o cabelo) Nunca em minha vida eu tive uma experiência conjuntiva.

Você vai cumprir pena no presídio ou no hospital psiquiátrico?

Meu advogado alegou insanidade. Assim, deverei passar por várias sessões de análise sintática.

Você tem algo a dizer à família de suas vítimas? Arrepende-se dos crimes que cometeu?

(Afrouxa a gola) Sim, eu poderia até me desculpar junto à família linguística indo-europeia, da qual nasceu o Português. Mas como receio que ela faça uma incorreta interpretação do texto, vou poupar o meu latim. E quanto a arrependimento, não, eu não arrependo-me. (Um repentino brilho no olhar) Na verdade sim, mas não resisti a utilizar essa ênclise inapropriadamente!

Neste ponto os guardas imobilizam o entrevistado com uma mordaça de força. Fim da entrevista.