Ernest Hemingway prova que a vida é um eterno recomeço

Ernest Hemingway prova que a vida é um eterno recomeço

Cansado das badalações de Nova York, as farras na Cidade Luz foram registradas com abundância de detalhes em “Paris É uma Festa — e em todos os outros lugares, grandes ou pequenos, pelos quais passou, Ernest Hemingway escolheu Cuba para se retirar e descansar da pena. E descansou mesmo: a literatura para Hemingway rapidamente se tornou um pálido diletantismo, tão absorto estava com pescarias, conversas despretensiosas com os moradores locais e sestas após o almoço. O “mercado” não queria mais saber dele. Seu último romance de sucesso, “Por Quem os Sinos Dobram” (1940), já havia completado dez anos. Deu-se uma infrutífera tentativa de retorno, com “Na Outra Margem, Entre As Árvores” (1950), mal recebido pelo público e, claro, desancado pela crítica.

O livro era, meloso, arrastado e prescindia completamente do estilo certeiro de Hemingway, que, com toda a razão ficou mordido e prometeu se dedicar a escrever sua obra máxima. No ano seguinte, enviou a seu editor os originais de “O Velho e O Mar”, publicado em 1° de setembro de 1952, junto a um bilhete em que dizia: “Eu sei que isso é o melhor que posso escrever na minha vida toda”.

Não se sabe se Hemingway estava sendo humilde ou, ao contrário, um tanto presunçoso, mas a verdade é que o velho lobo estava de volta à estepe: “O Velho e O Mar” arrebatou o Pulitzer, em 1953 e Hemingway ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1954. A aposta dos críticos de que a vida de Hemingway em seu autoexílio no então paraíso perdido da América Central, ainda antes de Fidel, era a culpada pelo “fim” do autor nunca se provou mais falsa.

O Velho e O Mar, de Ernest Hemingway (Bertrand Brasil, 126 páginas)

Último livro do romancista publicado em vida, o canto do cisne de Hemingway tem por eixo a história de Santiago, um velho pescador cubano. Há 84 dias sem pegar nada digno de nota, mas recebendo o entusiasmo — e ouvindo as provocações — de um garoto com quem dividia o convés, Santiago acaba pescando um colossal marlim de quase 700 quilos. Só a movimentação a fim de conseguir atracar o animal ao barco já é um livro à parte e, ao finalmente vencê-lo, o pescador ruma para a praia. Ao chegar em terra, contudo, um último golpe na alquebrada moral do veterano: o peixe fora inteiramente devorado ao longo da viagem, restando só sua carcaça.

Pode-se tranquilamente lançar mão do clichê caduco de que os clássicos já nascem clássicos para se discorrer a respeito de “O Velho e O Mar”. Apesar de breve, a história do velho Santiago é a metáfora perfeita acerca do processo artístico do autor — especialmente depois de Cuba — e, em última instância, da própria condição do homem, uma alegoria de como se vencer o sonho e, afinal, concretizá-lo, torná-lo visível para si e para os outros, o que constitui um processo penoso, sofrido, repleto de questionamentos, de hesitações, de luta contra a própria covardia e, exorcizados todos esses fantasmas, ter de enfrentar a dor maior de chegar à terra firme e se deparar com nada além do que ossos.

Poder-se-ia também tomar “O Velho e O Mar” como uma alusão à necessidade de se fazer escolhas a toda hora na vida, mais precisamente, escolher que sonhos sonhar, que riscos correr, para não ficar maluco nem morrer na solidão, segundo cantaria Roberto Carlos. Hemingway, no entanto, não dava asas a essas especulações sobre o lirismo da obra. “O mar é o mar. O velho é um velho. Todo simbolismo do qual as pessoas falam é besteira”, testamentou em carta ao crítico Bernard Berenson.

Hemingway podia negar à vontade, mas a história tem óbvios pontos de contato com sua própria vida: Gregorio Fuentes, amigo do autor e capitão do barco Pilar, serviu de inspiração para Santiago. Como o personagem, Fuentes era um marujo tarimbado, com o rosto cheio de rugas, pele curtida pelo sol do Caribe, compleição magra, vivazes olhos azuis e natural das Ilhas Canárias.

Também é autobiográfica a paixão que Hemingway nutria por Cuba: essa era a terceira vez que o autor de “O Sol Também se Levanta” (1926) morava no país. Em 1939, foi viver numa fazenda distante 25km da capital, Havana, com a terceira mulher, a jornalista e escritora Martha Gellhorn, e os 12 gatos que tinham. Correspondente durante a Guerra Civil Espanhola, ele passou a primeira metade da década de 1940 na Europa, mas voltou à ilha em 1946, com a nova companheira, Mary Welsh, também jornalista e escritora, tendo de abandonar sua pátria afetiva em 1959, quando da eclosão da Guerra Fria e o rompimento entre Cuba e Estados Unidos, e retornar para o país em que nascera segundo o frio passaporte. Em entrevista ao “The New York Time” em 1999, Patrick Hemingway, filho do escritor com Pauline Pfeiffer, sua segunda mulher, chegou a dizer que sair de Cuba foi uma das razões que levaram à depressão do pai. Hemingway cometeu suicídio em 1961.

A paixão de Hemingway pela ilha foi calorosamente correspondida. Seus livros são vendidos nas lojinhas de suvenires do governo; seu nome, claro, batizou bebidas; sua fazenda virou museu e os descendentes do velho Gregorio Fuentes ganham a vida conduzindo turistas para passeios no velho barco do autor.

Os clássicos, de fato, nascem clássicos, mas para nascer clássico, é preciso tempo. A sentença pode parecer contraditória, mas obras como “O Velho e O Mar” só resistem ao tempo porque são muito mais sólidas que ele. Ao falar de solidão, superação, desespero, batalhas internas e resignação frente às trapaças da vida, Hemingway quis, da forma mais lúdica que poderia encontrar, convidar o leitor a se autoconhecer, se autoironizar, convencê-lo de que nem tudo pode estar sob o nosso controle. A vida é um mar proceloso que se atravessa numa nau sem casco e “O Velho e O Mar” é um farol invencível em meio a esse oceano de som e fúria que deságua numa praia que não conhecemos.