A malandragem retórica de Oswald de Andrade e a arte brasileira

A malandragem retórica de Oswald de Andrade e a arte brasileira

Existe uma arte brasileira, como existe uma arte russa, uma francesa, uma norte-americana etc? A pergunta pode parecer sem cabimento, para alguns, mas já foi motivo de grandes controvérsias. Os mais céticos acham que nunca fomos além de “importadores culturais”. A questão é complexa, nada nada porque a premissa (entre aspas) é frágil, e ainda porque não é a única perspectiva. E há duas perspectivas, sendo que a palavra “originalidade” deve ser usada com o cuidado que se tem diante dos conceitos relativos. Mas as duas perspectivas, abrangendo desde a literatura até as artes visuais, são as seguintes: a) de um lado, a capacidade de absorvermos teorias importadas e aclimatá-las ao nosso modo de ser, ou b) nossa capacidade de criar, a partir de um conjunto de referências inevitáveis, algo realmente diferente, em matéria de expressão. Não é um jogo de palavras.

No primeiro caso, sim: com certeza existe uma arte brasileira. Todo o modernismo da Semana de 22 condiz com essa perspectiva, pela simples razão de que os artistas mais importantes daquele movimento absorveram as teorias de vanguarda europeia e as representaram, no Brasil. Foram, cada qual à sua maneira, cubistas, expressionistas, surrealistas etc. Nenhum desses “ismos” surgiu aqui. Di Cavalcanti, por exemplo: sua pintura deriva claramente de Picasso, o que não a impede de ser reconhecida como brasileira, em qualquer lugar do mundo. Mas assim é por causa de seus motivos: o samba, as mulatas, as favelas. Mesmo as teorias de Oswald de Andrade se enquadram nessa primeira perspectiva, visto que apenas justificam a importação estética por meio de um álibi de penachos: o canibal. Não é uma teoria nova da arte, mas uma malandragem retórica. Porque o que se fez aqui, nos anos 1920, sempre foi feito em qualquer tempo e lugar, independente de um manifesto de “cor local”. Nunca foi diferente entre europeus, europeus e americanos, russos e europeus etc. A deglutição incessante de ideias é um fato universal. Basta ler qualquer livro de história da arte (e da música, da literatura…) para se constatar quão intenso é o comércio das ideias artísticas, entre povos diferentes.

Nesse sentido, nossa arte é tão legítima quanto a espanhola ou a italiana, e Oswald de Andrade é o eruditíssimo teórico universal de uma obviedade. Não foi tão radical quanto Paul Gauguin entre os primitivos da Polinésia, ou a compreensão antropológica de Jean Dubuffet.

É mais interessante ver se existe uma arte brasileira nos termos da segunda perspectiva: aquela arte capaz de criar, a partir de um conjunto de referências inevitáveis, algo realmente diferente. Afirma-se que os Estados Unidos conseguiram realizar essa proeza com o Expressionismo Abstrato: a mais autêntica contribuição daquele país para a arte contemporânea. Isso — obviamente aliado à hegemonia política, militar e econômica, após a Segunda Guerra mundial — transferiu o eixo da cultura ocidental de Paris para Nova York, em meados do século passado. Antes disso, os artistas norte-americanos eram no geral mais ou menos como os brasileiros: simples antropófagos culturais, um tanto a reboque de europeus (havia exceções, como Man Ray, Alfred Stieglitz, Edward Hopper). Mas, aí é que está: a base do Expressionismo Abstrato é a chamada “poética do gesto”, invenção de um europeu chamado Hans Hartung, e a influência do “automatismo” surrealista é fato líquido e certo. Conjugados, esses dois fatos explicam parcialmente a pintura de Jackson Pollock. Isso também não é antropofagia? Não se trata também da transformação do tabu em totem, como propunha Oswald de Andrade? Sim, mas não no sentido de adequar temas nacionais a “ismos” importados, como naquela primeira perspectiva.

Há diferenças: primeiro, a abstração de Pollock (o Expressionismo Abstrato em geral) não se parece com nada feito antes. Não é como a mimetização cubista praticada por Di Cavalcanti, que tampouco criou um novo “ismo”. Segundo, Pollock é principalmente um produto estético da cultura industrialista, consumista e de massas, dos Estados Unidos. Mas o é como negação total daqueles valores sociais, cujo pressupostos são o cálculo e a utilidade — por isso mesmo Pollock não tem cálculo quase nenhum nem é útil como um impessoalíssimo desenho industrial. Sua pintura é afirmação existencial de um sujeito contra a massificação: daí sua impulsividade criativa. Giulio Carlo Argan comparou essa arte ao jazz, porque é espontânea e imprevisível. Como aquela excepcional música dos pretos, cria-se, rítmica, durante a execução, constituindo-se “do mal-estar e da revolta numa sociedade da ordem e do bem-estar”. Essa pintura fundou um “ismo” iminentemente norte-americano, mais até que a Pop Art, antecipada na Inglaterra por Richard Hamilton.

Nesse sentido, também, a resposta é sim: o Brasil deu uma contribuição original à arte: o Neoconcretismo. Não nos anos 1920, mas a partir do final daqueles mesmos anos 1950, da “action painting” norte-americana. Seu grande teórico é outro homem das Letras: o também poeta Ferreira Gullar. Suas pretensões eram globais: “Propomos uma reinterpretação do neoplasticismo, do construtivismo e dos demais movimentos afins”, afirma, no manifesto de 1959. Gullar está certo de que “fundam um novo espaço expressivo”, o que não é pouco. O inevitável são as influências referidas, e o que há de original é a maneira de abordá-los, algo que vai além dos temas (até porque não se fala mais em “representação”, visto que a arte se tornou autorreferente). Trata-se de compreensão profunda, com vistas não a consolidar, mas a superar, recolocando a “expressão” no contexto da arte internacional dita geométrica. Os neoconcretos se propuseram a dar o passo que Malevich não deu, ao “transcender o racional e o sensorial”. Enfim, ao perceber a obra de arte não como máquina nem como objeto, mas como “um quasi-corpus” fenomenológico, cujo símile mais próximo é o organismo vivo.

A aplicação prática dessa teoria, que pretende ir além da teoria, rendeu “Bichos”, de Lygia Clark, e os parangolés de Hélio Oiticica — o cume da arte brasileira.