O Alienista: Machado de Assis explica o Brasil atual

O Alienista: Machado de Assis explica o Brasil atual

Em “O Alienista” (1882), talvez o conto mais conhecido de Machado de Assis, temos o médico Simão Bacamarte interessado em definir a loucura. Ao cabo, conclui o médico que ninguém é normal e apenas ele próprio é louco. Com isso, procede a uma inversão conceitual de loucura, cabível apenas aos sãos, sendo ele mesmo o único indivíduo mentalmente saudável, em Itaguaí! Intuição semelhante refulgiu em Anton Tchekhov, no conto “Enfermaria n. 6”, escrito dez anos mais tarde. Certa altura, ali, o paranoico Ivan Dmítritch diz o seguinte, ao seu médico: “Sim, doente. Mas dezenas, centenas de loucos passeiam em liberdade, porque a ignorância de vocês é incapaz de distingui-los dos sãos”. E conclui, perplexo: “Onde está a lógica?” Em resposta, Andriéi Iefímitch aceita que é por mero acaso que um deles é médico e o outro é doente mental. No conto de Tchekhov, o estoico e racional doutor Andriéi é encarado também como doente mental, enquanto os burocratas que o cercam — os verdadeiros loucos — se julgam sãos.

Porém, Machado de Assis é mais radical que o autor russo, indo às últimas consequências. Em “O Alienista”, Simão Bacamarte interna-se por fim na Casa Verde, instituição que criara com o objetivo de recolher os loucos do município de Itaguaí, a princípio conforme o entendimento corrente de “loucura”. Ocorre que, se a loucura é a exceção e não a regra, loucos são os que têm as faculdades mentais preservadas, teorizou após longa e minuciosa investigação clínica. Numa irônica inversão, a teoria de Simão Bacamarte leva-nos a concluir que hospícios deveriam existir para abrigar pacientes anormais, leia-se: os perfeitamente sãos. Ou, por outra, o mundo exterior é mesmo lugar de gente (sem aspas!) normal: neuróticos, psicopatas, alucinados, mentecaptos, dementes, paranoicos, mitomaníacos… Enfim, a gente comum.

A moral do conto vale para todas as épocas, e, portanto, para a nossa, também. A diferença do Brasil contemporâneo é que, pela primeira vez, a teoria de Simão Bacamarte assumiu ares de obviedade. Pois nunca certos tipos de doentes mentais — paranoicos e, principalmente mitomaníacos — supitaram, “cheios de razão”, na cena pública, como no Brasil recente. A ponto de corresponder, hoje em dia, a uma parcela importante da “opinião pública”, e até de orientar ações do Governo Federal. Antes, a normalidade (segundo, claro, a inversão proposta por Simão Bacamarte) era reprimida por filtros como o marketing, a imprensa, o decoro, a etiqueta, os cerimoniais, entre outras mediações possíveis do espaço público. Havia uma sanidade aparente, digna, portanto, de hospício, mas não do mundo exterior. Hoje há uma ruptura radical com essas mediações. O presidente mais desajustado que tivemos, até seu aparecimento, fora Jânio “Vassourinha” Quadros, em 1961. Os demais comportaram-se minimamente como pessoas equilibradas, respeitando os protocolos e liturgias do cargo. Michel Temer parece ter sido, de todos, o mais cerimonioso (Simão Bacamarte o recolheria, com certeza, até a metade de “O Alienista”).

Com o advento das plataformas sociais — em particular o WatsApp —, foi impossível manter aquele aparato de racionalidade pública. As tecnologias de comunicação e informação disruptivas popularizaram-se, e com isso os líderes passaram a adaptar-se aos liderados e não o contrário. Aconteceu o que jamais imaginaríamos, mas que afinal é muito lógico, conforme advertiu o paranoico Ivan Dmítritch, de Tchekhov: uma visão da loucura como sinônimo de normalidade. Entende-se, assim, porque líderes antipáticos, brutos e até cruéis podem perfeitamente ser eleitos pela massa. É um processo de identificação, e não adianta dizer que é “anormal”. Porque não é, mesmo! Essa é a razão de as críticas ao governo atual serem ininteligíveis, para seus apoiadores. Nos termos de Simão Bacamarte, indivíduos retardados constituem a regra em todas as sociedades, e não a exceção — logo, é normal que conquistem o poder, pois há número para tanto. É claro: ao legitimar maiorias, a democracia acabou revelando seu lado temerário, sombrio. Revelou-se uma cilada possível contra a cidadania. Caímos nessa cilada em meados da última década e estamos pagando com vidas, submetidos ao darwinismo social que orienta as ações do poder — portanto, às leis da natureza e não às do homem.

O Brasil virou uma grande Itaguaí, onde a gente sã, nas ruas, se sente fora do contexto. Onde a razão e a Ciência perderam a credibilidade, necessariamente. E onde uma fatia de mais ou menos 45 milhões de indivíduos, fanáticos, tornou uma nação inteira refém de sua insanidade: a coisa mais normal do mundo.

Simão Bacamarte explica o nosso caos.