Terraplanismo e pensamento conservador

Terraplanismo e pensamento conservador

O terraplanismo é evidência gritante de uma época viciada na desrazão. As consequências negacionistas não poupam sequer a saúde, a ponto de culminar em genocídio, no Brasil (que outro nome dar ao desempenho temerário e irresponsável das autoridades federais, no combate ao coronavírus?). Fizemos, porém, o que amigos de extrema-direita ironicamente nos convidaram a fazer: ouvir antes de julgar. Ouvir é facílimo para pessoas racionais. Assim, dedicamos nossa atenção a três personalidades que chamarei de expoentes conjunturais do “conservadorismo” de Pindorama: o escritor Olavo de Carvalho e, por indicação sua, J. Martins e Afonso de Carvalho Lopes — terraplanistas conceituados.

Olavo de Carvalho foi honesto e admitiu sua ignorância a respeito do assunto terraplanismo, mas deu crédito total àqueles jovens “pesquisadores”. Segundo palavras textuais do escritor, “esses entendem mesmo do assunto”, e “discutir com eles não é fácil”. São afirmações corajosas: ou cimentarão o rigueur filosófico de Olavo ou corroborarão, em definitivo, sua má reputação no meio acadêmico. Especialistas dispostos a acompanhar a empresa Martins & Carvalho, em suas plataformas virtuais, podem facilmente optar pela segunda alternativa. Acontece que Afonso de Vasconcelos é, também, um especialista. Seguro, debochado e articulado, ele apresenta as credenciais de geofísico e ex-professor da Universidade de São Paulo, com doutorado. Seria, portanto, o que chamamos de “autoridade” (se bem que Olavo expressamente não dê muito crédito à autoridade científica). A coisa complica quando somos apresentados ao guru de Afonso, o youtuber J. Martins: a pessoa que o levou à conversão ao terraplanismo.

J. Martins, do canal Sem Hipocrisia, deixa-nos completamente céticos. Em entrevista ao publicitário Celso Loducca definiu-se como “J. Martins”. “Quê mais?”, insiste Loducca. “Pesquisador, escritor. Talvez o grande estudioso do modelo da terra plana no Brasil”. Ok, mas qual sua “formação”? “Em questão de formação eu prefiro não divulgar, não falar, nunca falei.” “Por que?” “Porque pra mim não é interessante. O modelo que eu defendo não depende de formação”… E continua, ante um Loducca naturalmente escandalizado: “Então, o que depende de formação é o modelo do globo; você precisa passar por diversas etapas na vida pra entender o modelo do globo. O modelo da terra plana tem uma ciência mais simplificada, uma ciência de acesso pra todas as pessoas. Então, independente da minha formação, não vai mudar o formato da Terra”. Foi com essas palavras que J. Martins definiu-se e conceituou sua “ciência”.

Toda a argumentação de J. Martins mantém-se no nível dessa apresentação. Nenhum fundamento científico. Nenhuma prova. Muito misticismo, religião e ideologia. Mais prudente que seu guru — provavelmente porque já possui um doutorado pela USP —, Afonso de Vasconcelos desdobra-se, em seu próprio vídeo, em dois: a pessoa civil, de carne e osso, é “100% terraplanista”, mas o cientista “está estudando” o assunto. Seus argumentos são mais técnicos que o de J. Martins, e não se compromete inteiramente enquanto pesquisador. Enquanto youtubers, os dois entraram numa plataforma potencialmente lucrativa, onde consolidaram canais de sucesso. Se a superstição que cultivam pegou e gerou dezenas de milhares de curtidas, logo surgiram anunciantes, e é natural que tenha virado negócio. Faz bem ao ego e ao bolso; então, se no fim das contas tudo se resume a cifrões na conta bancária, quem se importa? O YouTube tornou-se um imenso auditório da Era da Pós-Verdade, onde o que menos conta é o currículo do sábio da vez. E mais: dupla personalidade é a coisa mais comum do mundo. Então, qual o problema de Afonso de Vasconcelos dividir-se em dois? Nenhum! Consuma seu produto quem quiser. Certamente, pessoas supersticiosas. Há legiões delas, no mundo, prontas para enriquecer ilusionistas.

A verdade científica sobre o formato da Terra foi deduzida de Eratóstenes com a regra de três; de Fernão de Magalhães e a circum-navegação; da captação a rádio da sonda Sputnik, em 1977, e de Marcos Pontes. Sim: o ministro da Ciência e Tecnologia de Bolsonaro disse a Andréia Sadi, com um sorriso: “Eu te garanto que não é plana (…) Eu vi”. Talvez, para J. Martins, o astronauta seja só um infiltrado da NASA no governo deles.

Mas não adianta: como explicar O GPS e o aparelho celular, com respectivos sistemas de satélites, que o professor Vasconcelos e todos nós usamos para comprar pizza? São baseados em precisos modelos matemáticos, determinados por uma geometria esférica do planeta Terra. Sabemos com certeza que tais modelos funcionam porque nossos equipamentos eletrônicos funcionam. Isso é irrefutável geometria aplicada. Funciona também para as viagens espaciais, navegações aérea e aquática, telecomunicações e internet. Não deviam funcionar, se a base dessa geometria estivesse errada. Mas é claro: J. Martins nega a própria matemática. Já os cientistas (todos eles) participam de uma conspiração heliocentrista em escala global. Todos, milhares de homens e mulheres, escondem o segredo. Segundo J. Martins, é o “ego” que não os deixa admitirem a verdade.

A linguagem irracional de J. Martins é prova cabal de sua falta de ciência. Para o mais elementar dos manuais de metodologia científica (Kerlinger, Lakatos e Marconi, etc.), a linguagem da Ciência é necessariamente lógica e objetiva, ou não constitui ciência. Não comporta adjetivos nem opiniões políticas, muito menos profissões de fé, baseadas ou não no livro de “Gênesis”: todos os vícios presentes nas falas de J. Martins. Isso faz lembrar, por contraste, o ex-ministro da Saúde do governo Bolsonaro Nelson Teich. Sempre que concedia entrevistas Teich era provocado pelos jornalistas a emitir opiniões, por discordâncias com o presidente, um reconhecido burlador de normas sanitárias. Entretanto, Teich era categórico em evocar a condição de médico (portanto cientista) e não entraria nessa seara — a das arapucas da linguagem. O oncologista sabia distinguir as coisas, e é emblemático que tenha sido expelido do ministério três meses depois de assumir. A Ciência verdadeira sempre desagradou o chefe obscurantista que prometera ao eleitor um gabinete de técnicos — e não cumpriu.

Após circum-navegar, chegamos aqui ao polo oposto do terraplanismo — este, realmente perigoso. Assunto em tese relacionado às ciências exatas, pode-se acreditar que ele não tem nada a ver com movimentos políticos. Afinal, terraplanistas dedicam-se à investigação do formato planetário, e não aos seres complicados que nele habitam, com seus conflitos. No entanto, as duas coisas têm íntima conexão e se explicam, encaixando-se no esquema geral daquela reação conservadora, cujas demandas deveriam a princípio ser completamente estranhas à discreta classe dos astrônomos e geofísicos. Mas não é.

Apesar da ampla audiência em sociedades tradicionais como a brasileira, o terraplanismo é frágil diante de um fato incontestável: a perpétua metamorfose da realidade em outra coisa. A mudança é inerente a tudo o que existe na Natureza (incluindo o homem), e culpar a cultura — pretensamente “globalista” — de subverter crenças é inútil. Valores morais e padrões de comportamento — coisas que os grupos “conservadores” julgam transcendentes — tudo isso está sujeito à lei universal da transformação. O próprio conservadorismo é um fenômeno histórico, e não um dado imanente de nossa constituição natural. É apenas uma ideologia entre tantas no mercado, sendo próprio das ideologias chamar de verdade a sua interpretação particular dos fatos. Ciência não tem interpretação particular.

O terraplanismo — fenômeno cultural relevante —, é, então, apenas a variante do conservadorismo regressista aplicado à astronomia e ciências afins. Ou melhor, uma tentativa, visto que nem ciência é. O substrato inconsciente do terraplanista é simples: recolocar o homem no centro do Universo. Isso é claro na entrevista de J. Martins a Loducca: “Tudo isso [Darwin e similares] é para tirar o modelo criacionista científico”. Ou seja, seu debate é medieval; ainda é contra Galileu e Kepler. É necessário que os terraplanistas neguem o modelo heliocêntrico em vigor; aquele segundo o qual o homem não é o centro de absolutamente nada e deveria, com humildade, reconhecer sua insignificância na escala cósmica. Conservadores não convivem bem com essa ideia. É sabido que quando não suportamos determinadas verdades, nossa reação psíquica mais radical é o negacionismo e o consequente refúgio em realidades paralelas, criadas pela imaginação. O nome disso é mecanismo de defesa. Embora possa ter reconfortantes efeitos internos, não altera em nada a realidade objetiva: a Terra continua redonda como era desde o princípio. O homem, infelizmente, não é o umbigo do Universo.

Numa escala mais ampla, o terraplanismo é apenas um dos vários sintomas da reação conservadora mundial contra transformações sociais inelutáveis, que se manifestaram nas últimas décadas, em íntima associação com os avanços tecnológicos da Quarta Revolução Industrial. É um esgar de agonia, daí a violência dessa reação contra, por exemplo, “minorias” e “diversidades”, especificamente sexuais e raciais. Tais coisas, com suas visões alternativas de mundo, ameaçam valores estabelecidos, constructos sociais como a organização familiar, crendices. O saldo é o evasionismo (às vezes para o espaço), cuja característica psicológica mais pronunciada é a angústia. São entorpecimentos imaginários para não encarar a realidade, que teima em desconstruir tudo aquilo em que acreditam, pois não é eterno.

Ninguém está dizendo, entretanto, que a Ciência não apoia os negacionistas. Se se deprimem com a verdade — seja ela o heliocentrismo ou uma pandemia mortal —, busquem um psiquiatra. Só não piorem o que já está complicado!